Em tempos de "secundário", quando eu estava de férias na casa paterna, era uma maratona de trabalho e peleja, atrás da outra. Dava um duro danado! O meu pai "não alisava". Estávamos hibernados há uns cinco dias e cinco noites na casa-de-farinha que lá chama-se "casa do forno", no meio do mato, em terras de Seu Emidinho longe de tudo e de todos, em pleno capoeirão, com acesso para o resto do mundo por uma fechada e esticada vereda de tiririca, cipós, tocos e raízes transpassadas. De outros viventes, ali ouviam-se somente os cantos dos inhambus e sururinas, mato adentro, ao cair da tarde ou de juritis e rolinhas sangue-de-boi, a desoras do dia. E o relinchar dos cavalos de serviço, no capoeirão.
O batidão na "casa do forno" era o mesmo de sempre - do amanhecer até noite adentro. Pai, mãe, filhos e mais ninguém. Numa certa manhã bem cedo, surge por ali um mancebo sozinho e desconfiado - era PANTALEÃO AROUCHA, um contra-parente distante, filho de Patussino Arôcha. Chamava o meu pai de "compadre". E logo PANTALEÃO abriu o bico: roubou uma moça e estava ali também precisando da mesma casa-de-farinha para trabalhar uma tapioca, um polvilho extraído da mandioca, para fazer bolo, à festa do seu casamento. No dia seguinte Pantaleão voltou ali, acompanhado da NOIVA - que então soubemos chamar-se CANUTA - para trabalharem a tapioca para o seu casamento. De circunstâncias essas, o meu pai acabou sendo convidado para o CASÓRIO e, no contrapeso, eu, 3ª série do ginásio, também fiz parte da homenagem. Daí em diante vivi intermináveis dias de ansiedade e emoção. Até que enfim chegou o dia do casamento!
Manhã bem cedo, saímos todos de casa "aperparados" (bem vestidos), montados sobre cavalos arreados e selados - uns mais e outros menos - para em seguida, lá pelas "sete e pouca da manhã" nos encontrarmos todos no terreiro de Dionísio de Torquata e dali sairmos em cortejo, para o casamento. E assim se fez! Bem à frente, seguia o "pagem" - um convidado de honra, com encargos de serviçal, era ROSALINO DE FILISSO, conduzindo uma pequena bagagem dos nubentes e à disposição dos noivos. Em seguida os noivos CANUTA E PANTALEÃO, ele na sela; ela na garupa - montados no mesmo animal, seguidos dos pais e irmãos dos noivos, depois os padrinhos e na sequência demais convidados naquela caravana. Cavalos e cavaleiros, estes em roupa-boa, todos enfileirados, seguem a passos largos. E, em tempos de verão, "puxam caminho". Passam Rio-do-Meio, Santa Olaia, Bom Viver, Rumo, Belém, para enfim chegar ao Outeiro. Ali era um "Termo de Comarca", hoje extinto em nossas ordenações, onde havia um "cartoriozinho", específico para casamentos, bem como um "juiz de paz" exclusivo para casórios. Chegamos ao local por volta das "nove e tanta" do dia. E um dia de sábado!
Aí chama a "escrivona", chama o "juiz" - este tão roceiro como os demais que os esperavam naquela sala acanhada, de chão batido. Outro outros do lado de fora, na rua. E todos ali, em perfume, brilhantina e "roupa-boa". Começa a solenidade. O "juiz" solicita pleno silêncio e na linguagem do seu alcance dá um passeio verbal sobre a família, sobre o casamento, os filhos, a união conjugal, o trabalho, a vida em comum e exorta os nubentes a um convívio feliz e blá-blá-blá e blá-blá-blá e lá se foi quase uma hora. Bem que o meu pai me disse que ele gostava desse amasso e desse verbo. Depois disso as assinaturas. Aí já sabe como é que é! Quase todo o mundo ferrando e desenhando o nome em garatujas e mais outro tanto tempo, até que lá pelas "onze, por aí assim", estávamos no caminho de volta; desta feita com o casal anfitrião à frente do cortejo e eu lá, no meio da tropa, vivendo a história - para mim, primeira e única!
Enfim chegamos. Agora são quase duas da tarde, o que se deduz pela posição do sol lá em cima ou da sombra humana cá embaixo. Depois dessa maratona, cavalos suados e a gente só com o café-com-farinha, de manhã e "morto de fome". Mas como se sabe, o forte do casamento é o BANQUETE! O banquete (em comes-e-bebes), é o momento maior! Banquete, uma palavra e um costume em desuso. CANUTA E PANTALEÃO, solenes, sentam-se à cabeceira da mesa, para dali se levantarem só após o último levantar. Estamos os cavaleiros, em primeiríssimo lugar, diante de uma esticada banca de comida com individuados pratos-feitos e bem feitos sobre a mesa. Torta, arroz, carne frita. Cada prato uma montanha! Entre o zum-zum-zum do falatório, os pratos em serra aos poucos vão se desfazendo e as panças famintas se enchendo. Dali a cinco, seis "léguas de roda" não tem luz elétrica, por isso não tem cerveja, nem guaraná - só água do pote. Água de cacimba em copos está espalhada pela mesa. E eu lá vivendo o casório e a história!
A certa altura, o meu pai - primeiro e único por ali, chegado a uma poesia de cordel, incorrigível falante das multidões, ainda com os comensais à mesa, levanta-se e começa os "VIVAS". "Estamos todos aqui/ É grande a satisfação/ Parabéns ao casal/ E VIVA CANUTA A PANTALEÃO!". O meu pai esperava que alguém ali presente tomasse a iniciativa de uma réplica e como não apareceu voluntário, ele mesmo retomou o verbo: "Glória a Deus nas altura/ Paz na terra, aos meu irmãos/ Agora, unidos para sempre/ VIVA CANUTA E PANTALEÃO, meus senhores". A palavra naturalmente se fazia franqueada, mas ninguém ousava falar. E o meu pai ainda me olhou com aquele "olho comprido", em súplica, como um velho gato querendo ver sua cria dar o pulo. Calado estava, calado fiquei, vivendo na pele aquele momento único.
Lá pelas "quatro e pouca" da tarde, retomamos a montaria e guardei na mente aquele momento exclusivo. Mais tarde, quando eu dissertava sobre o meu sertão, em "TERRA DA MINHA TERRA", narrei outros detalhes que aqui não os mencionei, sobre o casamento de CANUTA e PANTALEÃO, lembrando ali até dos momentos, dois dias depois da "casa do forno", em que o pai e o irmão da noiva, como do costume, chegaram à casa do rapaz que havia "roubado a moça", para saber de suas intenções. E, em meio a cafezinho fresco, a pronta resposta de seu "Patussino Arôcha", pai de Panteleão, afirmando que "a honra da casa, será feita" - para a felicidade e tranquilidade de todos.
Bem mais tarde, quando voltei ao meu lugar, queria ver aquele casal e reconstruir aqueles caminhos; aqueles momentos; aquela história, porém o rio e igapós sobre o caminho estavam cheio e não davam passagem. Mais tarde com os filhos criados, PANTALEÃO foi para o garimpo e por lá ficou, para nunca mais voltar aos braços daquela, um dia sua noiva que o ajudara a fazer a tapioca para o casamento.
E, embora eu guarde com carinho e saudade a lembrança dessa passagem, também guardo uma frustração em saber que aquele casal há muitos anos desfez o seu casamento. Casamento de tanta tapioca! De tanta gente em "roupa-boa". De tantos cavaleiros. De tantas assinaturas demoradas. De tanta lição daquele "juiz". De tantos "VIVAS" do meu pai! De um BANQUETE e tanto!
1. Viegas é advogado e questiona o social
Seu Coló, bom dia!!!
Estou de saída para a minha terra natal - 25ª. viagem (EM TRÊS ANOS + 8 MESES), onde ali construo, dentro do mato (dentro mato) - 70 metros fora da estradinha carroçável, à beira de um povoado de 23 casas "meio que distantes entre si", o que ouso denominar de "MEMORIAL DE ANTÔNIO DE INEZ".
- Por isso, estou enviando, antecipado, o meu TEXTO, para o próximo domingo.
(De lá, por sugestão do apresentador, vou fazer um "flash" para o pograma CLUBE DA SAUDADE - Rádio Mirante/AM, São Luís (manhãs de domingo) às oito da manhã),
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Veja eta placa, seu Coló, em meio a outras tantas. Veja!
Neste lugar
chão dos nossos ancestrais
onde se planta o
MEMORIAL DE ANTÔNIO DE INEZ,
(à sombra dos matagais),
* o poeta sonhou os seus sonhos
* riscou e trabalhou o chão e
* costruiu os seus ideais
- Saudações,
Edição Nº 14771
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