GÊ – ERA UMA BOA MOÇA

(RETRATOS DA VIDA)

GÊ era uma boa moça, justiça se lhe faça. Deixou as bandas da outra banda para tocar promissores ares na vila da sesmaria. Chegou meio tímida, devagar, mas logo depois já compunha o corpo docente da instituição colegial. Compunha também o “raio soçaite” daquela juventude saudável e eletrizante do seu tempo. Seu rosto não colaborava muito, pecava na composição e até deixava a desejar, contudo era dona de um corpo lindo, escultural, “maravilhoso”, até! E esse desequilíbrio entre corpo e rosto, entre rosto e corpo, formava uma equação na composição feminina que era aquela gatona que era a GÊ.

GÊ logo enturmou-se no contexto da moçada do seu tempo e caia nas baladas numa boa, na reta, na decência, na dignidade ao convívio com a geração da sua geração. Era um tipo “boazuda”, como se dizia naquela época. E quem não gostaria de ter aquela “escultura” todinha nos seus braços e na sua cama pra chamar de sua? Quem? Quem? Mas era só isso: os flêrt’s, as paqueras, acenos, as seduções e tentações, eram investidas que estavam de olho e anseios só “naquilo”. GÊ, contudo, tava nem aí. Visava o sério, pretendia o sério, tinha olhos e coração só para o sério.

Naquela selva de tantas aventuras e aventureiros, o “sério” era  verbo para quase ninguém. A macharada trabalhando a tentação e GÊ nem aí. Ou era sério ou não era mais nada. E assim levava a vida no vai da valsa, nas baladas saudáveis de finais de semana; naquela do ouve e faz de conta que não ouve e lá mesmo do ver e faz de conta que não vê. GÊ era assim: tirava de letra as investidas que considerava mal-intencionadas. Sabe aquele toureiro que com um pano vermelho dá dribles estarrecedores naqueles touros ensandecidos de chifres afiados, em pelo e fúria de morte? Era assim a GÊ, uma criatura dócil, simpática, meiga que se esquivava sutil e discreta diante das mil e uma flechas de tentação que se lhes cruzavam o seu quotidiano.

Mas que não se pense que Gê era um “prato de arroz doce”, em meio ao lixão de tantos insetos. Não. Isso não! GÊ era apenas uma criatura como qualquer outra neste chão de tantas e todas as criaturas; só que centrada, consciente dos seus anseios, honra e dignidade no seu feitio. E dona de um caráter e de uma postura à toda prova que brilhava à qualquer tempo e a céu aberto. E que não se curvava nem se entregava aos apelos do quanto transpirava o seu próprio corpo ou os naturais meneios de sua feminilidade. Pelo contrário, dava de ombros, supostamente ignorava, até. E qual o toureiro, driblava e livrava-se das feras, seguia em frente, olhava através da vidraça, ouvia o latido dos cães e deixava a a carruagem  passar.

Mas... sabemos nós que a vida é um divisor de águas. Por vezes um pântano de surpresas. Ela mesma que nos reserva o amanhã que nem sempre aspiramos ou imaginamos; quais os rios que nem sempre conseguimos transpor. E somos submetidos a tropeços, quedas, tentações, abandono até. E que assim, nas travessias da vida tanta coisa nos reserva pela frente: obstáculos, decepções, mágoas, angústia, pesadelos. E, nesse meio de caminho, o refrigério, alegrias também.. E por que não? E por que não?

Foi assim que GÊ, na travessia da vida, em meio a tantos abutres ao seu redor, se desvencilhando de todos eles na moral e na discrição e deu de cara com o VÊ. Foi amor e paixão à primeira vista. Ambos na mesma proporção, formando um par equilibrado, razoável, decente. E tudo se fez em aprovação. E casaram-se “no padre e no civil”, como manda a Santa Madre Igreja, os costumes e a crença da sesmaria e da vila. E foram viver a sua vida, deixando GÊ para o lado e para trás uma página do seu viver imaculado e recomeçando um novo capítulo da sua trajetória, ao lado de quem viria a ser esposo e pai dos seus filhos.

É como disse há pouco, na síntese da vida: “por vezes um pântano de surpresas”, “o amanhã que nem sempre aspiramos ou imaginamos”. E , o marido, que antes do casamento já tinha um pé nos garimpos da vida cigana por aí, nem demorou tanto e... após o casamento, enfiou o outro pé de volta aos duvidosos garimpos. E aí? E aí que de garimpo em garimpo, de uma vida mundana e cigana,  fez-se do lar algo como um ponto de um eventual turismo marital. E os sonhos  e a vida do casamento se foram pelos ares. Irremediavelmente! Inevitavelmente!

GÊ, contudo, manteve a postura, a sobriedade e a dignidade de sempre. E construiu sua independência, sem nunca jamais curvar-se às flechas da tentação. Faz algum tempo GÊ partiu solene e sóbria deste chão  para o PLANO INFINITO, enquanto VÊ, que há muito já era uma ovelha desgarrada,  é  agora, apenas mais um na multidão, na sesmaria e na vila, abandonado em seus  próprios rastros no ingrato e apagado perfil de sua própria sombra. São os retratos da vida!!!