“A MANTEIGA LÁ DE CASA”

Eu deveria ter meus oito, nove anos e meu pai a esse tempo já ensaiava os seus primeiros passos em viagens de “vendedor ambulante”. Vendia redes artesanais que se aventurava em viagens quinzenais pelas terras de Matinha, Viana, Penalva Cajari e Pindaré, na Baixada do Maranhão. Vem desse tempo e de quando em vez que meu pai aparecia em casa com algo fora do comum, no gênero guloseima.

O primeiro deles, eu ainda me lembro, era um refresco em pó, Q-SUCO, que a gente pronunciava “QUISUCO”, lembra? Que a gente adicionava à água do pote. Gelo ou água gelada, nem pensar. Aquilo era uma novidade e tanta!  Hoje eu tenho consciência de que os jovens meus contemporâneos, daqueles arrabaldes do interior - meio do mato e fim da picada não conheciam aquela novidade. E a gente lá em casa, oh!, deitando e rolando em cima do QUISUCO, vírgula, vez por outra.

O meu pai fazia questão de inovar. E então o próximo a chegar foi... foi... uma lata  de leite condensado. “Leite Moça”, me lembro bem. Tantas vezes eu me perguntava por que o nome daquele sabor era “Leite Moça”, até porque a palavra “moça”, para mim tinha um significado solene, puritano. Imagine que, àquela época,  nós  éramos uns cinco em casa, com papai e mãe, éramos sete, na entidade familiar. E lá pelo meio, de tempo em tempo, uma  latinha de leite condensado. 

De começo estranhamos aquele produto viscoso, amarelado. E então, pelas manhãs, o meu pai punha um pouco de leite à xícara de café de cada um. E mais tarde quando com a minha mãe iam para o roçado. E a gente, ponta de pé, ia lá e “bulia” com o leite condensado. E tomava aquelas “gorpadas”, como a gente dizia. Na lata mesmo! Era uma aventura e tanta que poderia resultar nuns cocorotes e beliscões. Ambos sempre em dose dupla e com muita “ralhação”.

Depois foi a vez da manteiga. Ali foi simplesmente demais! Era aquela latinha de 250 gramas de “manteiga real”. O meu pai chegava da Vila, geralmente à noite, quando a molecada já dormia, até porque ele tinha uma “segunda via”, pelo caminho. E então, no dia seguinte, à hora do café, qual numa cerimônia, abria aquela latinha de manteiga e punha uma pequena porção para cada um; geralmente dentro do café ou por vezes misturado com farinha, até porque não havia pão ali por perto, só no “meio do mundo”. E, bolacha? Isso nem pensar!

Tantas vezes quando meus pais saíam pra roça e já com a família aos poucos aumentando, a gente ia lá na latinha de manteiga, ponta de pé e encarava uma colheradinha da manteiga. Às vezes dava em briga, uma discussão porque o moleque ia fundo na mexilança e logo estava escrito que ia ter bronca. E sobrava pra todo o mundo! Uma transgressão dessa não havia perdão; E o cocorote e o beliscão tinham tinha serviço! A MANTEIGA REAL marcou muito (muito a minha vida), primeiro porque era saborosa; depois porque era “fora de série”; finalmente porque ficou na minha memória pelo resto da minha vida, como até hoje (até hoje)

A partir daí, passei a observar a trajetória da “Manteiga Real”. E via sobre balcões de abastados comércios e mercearias, fosse na vila ou nos bairros da capital, jaziam latas de manteiga (meia lata) do tipo cinco quilos (ou dez quilos ?), que eram vendidas ao retalho seja em colheres, seja ao peso e, simultaneamente,  enlaçados em pequenos pedaços de papel “celofane” que a dona de casa ou o moleque compravam geralmente nas manhãs para o café. Vi isso tantas vezes. E eu ali, com água na boca, lembrando  lá... da manteiga lá de casa. E, com os meus botões: “Ah se eu pudesse!”.

Durante muito tempo perdi de vista a MANTEIGA REAL. Não a encontrava mais nos supermercados por onde ia e acabei dela me desligando. Depois passei a ver outras marcas similares, tais como: Manacá, Tourinho, Itacolomy, Aviação. Mas estas não me diziam o que tanto sempre me disse a MANTEIGA REAL. E acabava adquirindo uma ou outra marca apenas pelo intuito, mas sem a “emoção” do quanto me significava ou me significa aquela inesquecível... MANTEIGA REAL.

Outra coisa, ao que tento lembrar, a lata de manteiga Real trazia um desenho com uma coroa. E tanto a marca quanto o desenho me remetiam a um produto do reino, do Brasil-Colônia – tempos de reis, rainhas e outros fidalgos, levando-me a imaginar que essa MANTEIGA REAL tivesse a ver com a linhagem à mesa da nobreza o que mais ainda corroborava quando eu lia: “Produto de primeira qualidade”. “ Desde 1925 ”. Então eu fazia as contas: Um tempão!!!

Com o advento de novo supermercado que serve à cidade, olha com quem eu dou de cara! Com a manteiga lá de casa! Tenho descontado e pago os velhos pecados de frustração e gula que ficaram guardados nos tempos da minha criancice e juventude. Seja dos tempos em que o meu pai chegava com uma latinha de 250 gramas para servir por uma semana inteira à filhada, seja quando daquela lata de cinco quilos que jazia sobre os balcões de comércios e mercearias para serem vendidas em retalho – ora ao peso ora às colheradas. E eu ali, com os meus botões.  Ah, eu  pudesse!!! Por conta disso, até hoje, não aceito margarina!

Os tempos mudaram e aquela manteiga  medida controlada, escondida e festejada da minha criancice, aquela manteiga “lá de casa”, hoje serve-se farta, disponível – Graças Deus – na minha casa.  Foi assim que certa feita, faz anos,  escrevi um texto com o título: “A MANTEIGA LA DE CASA”, que  está perdido em meio a tantas outros perdidos que os tenho por aí. Mas tudo o que gostaria  agora, é que tanto o meu pai quanto a minha mãe estivessem neste plano-terra para a exemplo de tantos outros, pudéssemos, juntos “saborear” esta segunda edição de... “A MANTEIGA LÁ DE CASA”.