OS MORADORES DE DENTRO DO MATO
Final dos anos cinquenta. Período em que ocorrem os fatos. Baixada do Maranhão, “onde o vento faz a curva”. Mas que nunca se diga que lá “o diabo perdeu as botas”, pois que ali, chão dos meus ancestrais, ficou enterrado o meu umbigo, em meio àqueles matagais da pobreza e roças em capoeirão. Chão da minha eterna paixão; das minhas leituras e releituras, aspirações e agora inspirações, para onde tenho voltado em 56 viagens, ao longo de 12 anos; onde construo “MEMORIAIS”, dentro do mato para avivar a memória dos meus pais, meus avós, parentes e outros mais. E, como a vida me ensina: “cada qual para o que nasce/ cada qual para o que nasceu”– assim é você / Assim sou eu.
Aquela linha que parte do pequeno povoado outrora com cinco casas de taipa e palha, distantes umas das outras, sempre por dentro do mato, formando um mísero e inexistente caminho, aquilo é um “rumo” ou “divisa” de terras. Lá adiante encontra-se com outra linha em semelhantes condições, conformando um ângulo de noventa graus, ambas em esticada distância. É nesses catetos onde estão OS MORADORES DE DENTRO DO MATO.
Na primeira linha desse cateto, nas terras dos Teixeira, mora/va um senhor, desdentado, remanescente da primeira geração pós-escravatura. Chamava-se MIGUEL DE LUZIA. Chegou por ali, vindo d’outras paragens, num tempo em que se pedia um “lugar de casa” ao dono das terras. Após breve conversa, definia-se o lugar da nova morada. Miguel de Luzia tinha uns cinco filhos e filhas. Não me lembro de sua mulher. No seu “terreiro” em volta da casa, havia algumas pouca criações. Tinha o matagal por todos os lados como os seus surdos-mudos vizinhos. Seu bem maior era um coitado cavalo de serviço (cavalo de cangalha), montado no qual Miguel de Luzia punha-se em demoradas conversas.
Lá mais adiante, também nas terras dos Teixeira morava um homem “brancarano”, com suas barbas esbranquiçadas que lhe tomavam o rosto. Chamava-se JOÃO GUEGUÉ, a quem tomávamos a bênção chamando-o “Meu tio João”, de quem tínhamos medo. Morava dentro do mato com suas filhas e netas. Não me lembro de sua mulher. Vivia em quilômetros, abaixo da linha de pobreza. O seu quintal, a dois ou três passos, era tomado pelo matagal, este que, por todos os lados, faziam-se em surdos-mudos vizinhos seus.
Não lembro se em sua casa, onde passei por raras vezes, se havia criações de terreiro. A palavra “grode” (grogue de cachaça ), ouvi em referência a João Guegué, pois ele gostava de um grode. Em companhia do meu pai, fui a uma “via-sáca” em sua casa. “Via-sáca” um nome que me arrepiava, cuja reza se fazia, pelo falecimento de alguma pessoa da família. Lembro-me que, quando da reza, na casa de Guegué, punha-se ali, debaixo da pequena mesa uma vasilha com água que era para “o isprito do morto”. GUEGUÉ não gostava do apelido e este transferiu-se para todos os filhos. Seu bem maior era um CACETE, quase um amuleto, com o qual andava para cima e para baixo. Sempre!
Outra “moradeira” de dentro do mato, já no outro cateto (na outra linha de divisa), era DONA CRISTOVINHA. Morava em terras do meu avô Doca Barros. Acho que veio das bandas do “Puleiro”. Seus quatro vizinhos – frente fundo e laterais era como os demais, o surdo-mudo matagal. DONA CRISTOVINHA era uma mulher calada, disposta, “trabalhadeira”! Chegou ali em companhia de seus filhos: Anja, Domingas e Cadete e o genro JOÃO (recém-casado, marido de Anja), ali conhecido como João de Cristovinha, todos exemplares e trabalhadores. Cadete, mais tarde, morreu de “desastre de carro”, na cidade. Dona CRISTOVINHA de notícia que não tive, mudou-se dali. E João e Anja, mais tarde vieram a se separar. Tantos anos sem qualquer contato, hoje não mais sequer nos conhecemos mas aquela separação me doeu. Agora, vou visitá-los e lembrá-los daqueles tempos em que eram MORADORES DE DENTRO DO MATO. Saber dos detalhes...
Um tanto mais adiante, nessa mesma linha do cateto, do outro lado da divisa do precário caminho de apenas algumas pessoas, nas terras de “Dionísio de Trocata”, morava GREGÓRIO DE BASTIÃO, outro que vivia quilômetros abaixo da linha da pobreza. Dublê de lavrador, Gregório era mesmo era CAÇADOR. Vivia mato adentro com seus magricelos cachorros de caça, tão magricelos como sua mulher e filhas, pela desnutrição. Matava e vendia suas caças. Por vezes e pela jornada, dormia no mato com seus cachorros. Era comum vê-lo sujo de terra, pois se embrenhava nos buracos das caças.
Contava a lenda viva que GREGÓRIO tinha pacto com CURRUPIRO (Curupira, Saci pererê). Corrompia CURRUPIRO com fumo, que deixava-lhe no mato em troca da facilitação com as caças do mato. Era incrível! Mas ninguém conseguia o que GREGÓRIO conseguia, a ponto de que vendia suas caças antes de capturá-las. E nisso também enganava as pessoas. Sua casa “não tinha nem lá dentro nem lá fora”. O matagal por todos os lados era o seu vizinho surdo-mudo. E seu bem maior era seus magricelos cachorros de caça.
Nessa mesma linha de “divisa” lá bem mais adiante, vivia com sua entidade familiar, nas terras do “CENTRINHO”, o não menos “ilustre” MORADOR DE DENTRO DO MATO: Era o senhor MEU PAI, Antônio de Inez, dono das terras. Ali, sim, o vento fazia a curva. Aqui, tem matéria para uma coletânea, uma enciclopédia, um tratado! Nossos vizinhos, pela direita quanto pela esquerda distavam em média, um quilômetro. Na nossa casa, em princípio, tinha uma banca, dois tamboretes, um pote, três cabaças de água. Há meio quilômetro uma cacimba de água azul e, ao lado de casa um riquíssimo santuário em forma de JUÇARAL, com dois gêmeos pés de buriti, sob o qual escorria um filete de água que mantinha o curso sempre úmido, no verão.
Nas férias, no alto das juçareiras que faziam curvas ao vento eu fazia promessa para Santo Expedito, para chegar com vida, são e salvo lá em baixo. Lá em cima, eu passava de uma juçareira para outra, roia o pendão e arrancava e descia com dois e até três cachos de juçara. Mas aí pegava o toco, a formiga, as raladuras, abelhas e maribondos mas o almoço estava garantido! E, com uma “bandinha” de peixe seco, aí era demais!
Hoje, gerente de banco oficial, o meu irmão, ZÉ BRANCO que, num gesto de vitória e contentamento, exclamava: “Achei um buriti!”, homenageia a sua moderna chácara com o título de “CENTRINHO”. Lembro ainda do bem maior do meu pai que era um invejável cavalo de cangalha e uma pistola que ele chamava “mausa” ou “beretta”, que ele usava de pura “galanducha” (enfeite). Lembro daquele meu Diploma de Dactilografia com retrato e tudo que ficou por “uma vida” na parede. E escrevo incontáveis temas e lembranças de um tempo em que como os demais, éramos MORADORES DE DENTRO DO MATO.
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