“LENDAS RURAIS”
Acabo de chegar da minha terra natal, na Baixada do Maranhão. Viagem nº 55 em 12 anos. Estive por ali para cuidar da manutenção (capina, limpeza) dos sítios florestais que ali trabalho: um deles para homenagear a memória dos meus pais e um outro e mais adiante, para preservar a memória do meu avô. Sempre que estou por ali provoco as pessoas sobre as tais “VISAGENS” que por ali sempre diziam existir, todas relacionadas com “dinheiro enterrado”. Eu que morria de medo dessas estórias e daqueles lugares “visagentos”, até hoje fico com “um pé na frente e outro atrás” com o que me contam.
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Zé de Fosta, também conhecido por Zé da Gorda, era um sujeito  fechado, caladão. Não tinha amigos, nem era amigo de ninguém. Morava só. Na cumeeira de sua casa morava uma cobra jiboia, cuja hospedagem afastava qualquer intruso. Conheci-o morando nas terras do meu avô, num casebre dentro do mato, servido por uma precária vereda, dentro de um matagal. Meu avô dispensava-lhe atenção e exigia que o respeitassem.  Diziam por ali que ele teria vindo das bandas da “beira do campo” -  do Deserto ou do Puleiro. Era só isso. Zé de Fosta virava uma fera se lhe chamasse pelo apelido de ZÉ BICUDO. Insultava a mãe do detrator até os “confins”; de resto o que se via era “trovejar e relampear”.

Zé Bicudo em mais de quatro léguas de rodas, tinha fama, “dito por uma boca só”, que virava porco, virava “labisonho”. Onde Zé Bicudo passava, a molecada fazia silêncio, outros saíam “de carreira” e tudo e todos faziam de tudo para evitá-lo. Eu era moleque,  12, 14, 16 anos, “me pelava de medo” de Zé Bicudo. Contavam mais tarde que ele certa feita, envelhecido, com umas cachaças do juízo (morreu com mais de 100 anos), numa rodada, dele zombavam, provocavam e diziam que ele não virava porco, coisa nenhuma. Ele aceitou o desafio e “logo começou a preparar-se para virar bicho”. E quando os mais velhos viram que  “a coisa era séria”, logo começou o “deixa disso”.

Joana da Mangueira, era uma mulher “despachada”, solteirona, falante, um prato cheio para as fornicações daquele lugar sem opções. Durante o dia nas roças alheias ganhava diárias e, à noite... ela se virava naquela sua modesta e solitária casa de palha e chão batido, justo ali à beira daquele mangal. E daí o apelido de “Joana da Mangueira” que ela abraçava com estima.

Contava Joana que, num fim de tarde, Zé Bicudo passou por sua casa meio que devagar, olho comprido, querendo namoro, quando Joana, sentido-se assediada e na recusa, o escorraçou. “Olhaí Zé Bicudo, tu não vai virar porco por aí”. Pobre Joana! Aquele mangal  sombrio sobre a encruzilhada era terreiro varrido das viandanças de Zé Bicudo. Aí não prestou: o sujeito saiu fumaçando, dando coice no ar, cuspindo fogo. E Joana, sozinha, pôs-se em sua casinha de palha com portas de “meaçaba”, também feitas em palha.

Daí a pouco, contava Joana, o que viu “foi uma tempestade e um bicho fuçando, bufando e roncando e querendo botar a casa no chão”. E Joana pôs-se as gritar: “eu sei que é tu Zé Bicudo, eu sei que é tu Zé Bicudo” – era como se quisesse espantar o bicho, mas era como se jogasse gasolina sobre o incêndio. A situação só piorava. De tanto gritar na noite, despertou na distância o latido dos cães e o apurado ouvido da vizinhança que lhe vieram em socorro. Zé Bicudo deixou o local e ao amanhecer, a falastrona, solteirona e despachada Joana da Mangueira mudava-se daquele mangal e contava para todo o mundo o seu pesadelo acordado, daquela noite.
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As versões sobre Zé Bicudo eram terríveis. Certa feita, na noite, quando ele encontrava-se a um balcão, à espreita de uma cachaça, chega um rapaz. Duas pingas no juízo, “fobando” valentia, vindo do garimpo. Viu Zé Bicudo e, insinuante e proposital, puxou um 38, bateu sobre o balcão e desafiou “qualquer bicho” que o cercasse pelo caminho, na noite: “Caio de bala”! E insistia em bater o revólver sobre o balcão. Àquele tempo, revólver e bala naquele meu embora pacato lugar era coisa do cotidiano. Ninguém levava a sério. E a polícia ficava a 30 quilômetros e nunca aparecia por ali.

Mais umas duas no juízo e o elemento saiu com o revólver na cintura, montado em seu cavalo. Zé Bicudo, que permaneceu no local sem dizer uma única palavra, saiu ao terreiro e... executou um grunhido, qual um uivo  tétrico de cachorro, em lua do mês de agosto, que dizem ser agourento e de mau presságio. Conhece? E voltou par a beira do balcão tão calado como sempre estava  e sempre era. Conta-me o quitandeiro justo da bodega onde se deram os fatos e a cena, que no dia seguinte, o rapaz foi encontrado “todo obrado e mijado” e perdido no mato. Seu cavalo “desmalhou-se”, perdeu o revólver e o atrevido chegou em casa pelos braços dos outros.
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Eu era moleque e morria de medo de “CURRUPIRO”. Currupiro, diziam, é um negrito, entidade das matas, de uma perna só, pé virado para trás, com uma cobertura em vermelho, sempre com um cachimbo à boca. Faminto por fumo. Diziam que ele assobiava e provocava dor de cabeça nas suas vítimas, que também perdiam-se pelo matagal. Diziam que ele jogava as pessoas contra o espinheiro, também afugentava e protegia a caça contra os caçadores. Gregório de Bastião era paupérrimo bem abaixo da linha de pobreza. Tudo o que possuía era uma mulher, quatro filhos e uns quatro cachorros - todos esqueléticos e subnutridos. A gente via o pauperrismo materializado. De lavrador, quase não tinha nada. Era caçador em tempo inteiro. E, com os seus cachorros, muitas vezes na distância, dormiam pelo mato.

Conta a lenda que Gregório era “empautado com CURURUPIRO”. Dava-lhe fumo que o deixava em lugares estratégicos no mato  que, corrompido, facilitava-se em capturar caças do mato. E naquele meu sertão, absolutamente ninguém, tinha o faro e o fado de matar tantas caças quanto Gregório de Bastião.