“REFRESCO COM PÃO”
(O GELADO DO SEU MUNDIQUINHO)
Seu Mundiquinho era, na minha cabeça, um bem-sucedido comerciante daquela minha cidade. Ele era dono e balconista único do seu “Bar do Mundiquinho”, em cujo estabelecimento haviam umas prateleiras esvaziadas, algumas poucas mercadorias do tipo “mercearia”, mas o forte mesmo era, ali, o “refresco com pão”, fosse de coco ou de maracujá. Enfim, um refresco com pão.
Os homens roceiros, analfabetos e descalços do interior que vinham à VILA, montados em seus cavalos de cangalha para vender suas poucas coisas tinham dois pontos básicos para o seu “quebra-jejum”, o seu lanche: que era um refresco com pão no Bar do seu Mundiquinho ou... um arroz “temperado” na casa de Coelho. Ou como se dizia: “o arroz de Coelho”.
Agora, imagine você: o roceiro saia de sua casa, muitas vezes, ainda no cantar do galo, às quatro, cinco da manhã, só com o café com farinha e tantas vezes nem ao menos isso. E tocava estrada, tocava cavalo para chegar à VILA lá pelas nove, dez horas. Ia vender a sua “carga” – arroz, milho, farinha ou frutas. Depois fazer suas compras: carne, peixe, sabão, querosene, açúcar e outros aviados para, enfim, lá pelo meio dia - pouco mais ou pouco menos, fazer o seu “quebra-jejum”, que era um refresco com pão, no bar do seu Mundiquinho.
Aquela, muitas das vezes era a refeição da jornada para só então, ao chegar em casa lá pelas cinco, seis da tarde, sete da noite, fazer a primeira e única refeição propriamente dita. E aí quando chegava em casa, tantas vezes vinha uma pergunta infalível: “E aí, o que tu comeu por aí?” E a resposta inevitável: “Tomei um refresco com pão, no Seu Mundiquinho”.
O outro lado dessa sofrença ia esbarrar no COELHO, ou, como também se dizia: no “ARROZ DE COELHO”. Coelho era um senhor de boa idade, dinâmico, da lida diária que tinha um pequeno comércio na rua principal da VILA, na Rua Grande. O comércio do seu Coelho consistia num salão de menos de 4 x 4, tudo junto, em alguns feixe de lenha, dois ou três cofos de carvão e o seu sempre presente “ARROZ DE COELHO”, cujo caldeirão postava-se sobre o velho balcão.
Era assim: repousava sobre um balcão de madeira um vistoso caldeirão negro em tisna de tição de lenha que continha um arroz colorido pelo urucum, ligeiramente temperado e que o velho Coelho servia, em medidas contadas aos pratos feitos – pratos de estanho, sapecados, amassados pelo tempo e pelo uso, conforme o pedido do freguês. Coelho destilava o suor do rosto e ganhava a vida diária, ali mesmo, em meio àquele “muquiço” de lenha, carvão e do seu “Arroz de Coelho”.
As pessoas falavam mal e diziam os diabos daquela pratança. Diziam que encontravam cabelo, e outros dejetos a até “cheiro de barata” no “arroz de Coelho”. Ainda assim, com toda essa rádio pião trabalhando no sentido contrário, o “arroz de coelho” continuava servindo àqueles roceiros que faziam o seu “quebra-jejum” lá pelo meio dia ou pouco mais e que só voltavam a uma “boia”, em casa, lá pelas sete da noite. Mas aí, muitas vezes vinha a pergunta: E aí o que tu comeu? “Comi um arroz de Coelho”. Aí... era como se o caboclo estivesse pagando uma penitência, interpretava o interlocutor.
E o velho Coelho, entre os escorridos do suor do rosto, os feixes de lenha, os cofos de carvão e... o caldeirão negro do seu arroz sobre o balcão. Sim, porque na vida cada um tece e come do seu ofício. E esse era o ofício do velho Coelho, o seu “Arroz de Coelho” – que as pessoas esconjuravam, falavam mal, benziam-se, mas iam bater lá! E o velho Coelho, empurrando com a barriga na marra, e na boa, tocando a vida e marcando presença diária no quebra-jejum do sertanejo.
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Refresco com pão, para mim, é um velho tema recorrente e recorrido. E até parece que foi ou é, para mim, uma velha sina. Logo eu que “não chuto o prato em que como”; que também aprendi que “não há quem não lhe cuspa pra cima que não lhe caia na cara”.
Tempos de colegial. Casa do Estudante Secundarista. Durante a semana uma “xepa” regular mas... aos domingos... só almoço. Aí a turma ia se aliviar no “Bar do Seu Baú” a duas quadras, no Largo do Gavião. Seu Baú servia aquela estudantada há dez, quinze, vinte anos, mas não se ligava na cara de seu ninguém. Não fazia amizade. E aí era refresco com pão pra cá, dinheirinho contado pra lá. E... “tamos conversados”
Por vezes o refresco do seu baú já estava vencido, azedo, dormido, “estragado”. E se a vigilância sanitária – que àquele tempo não existia - passasse por lá, iria tudo pro beleléu. Certo porém que ninguém se dava por vencido. Nem os colegiais da Casa do Estudante que iam em frente, encaravam na boa e não se davam por vencido, nem o seu Baú com o seu refresco vencido.
Hoje, na minha casa, para reconstruir e louvar um velho tempo, ainda faço o meu “refresco com pão”, para rever as pegadas de um tempo, sentir o sabor da própria história e dizer com todos os pulmões; “obrigado, senhor, por mais um dia” !
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