Alguém já me que meus textos “têm cara de novela das sete”. Não me regozijei nem me iludi – pois que disso eu já desconfiava. Meu amigo Dr. Lucas Filho, advogado, tornou-se meu leitor cativo e até me liga sorrindo, para comentar os meus textos e chega dizer que “se sente dentro da trama”. Vavá Melo, intelectual, meu conterrâneo baixadeiro, cometeu a insanidade de dizer que “teu estilo me fascina”. Itaerço Bezerra, poeta, intelectual imortal e coisa e tal acaba de me dizer que “você me fez chorar de emoção... é a segunda vez que isso acontece”. Então acabo de descobrir que tenho, pelos menos, uns quatro leitores. Três são os outros e o quarto sou eu!
MORTE E VIDA, OZEBINHA
(terceira edição – revista, ampliada e decotada)
Diz o ditério que “cada terra tem seu uso / cada povo tem o seu fuso”. De fato: cada povo tem seu uso. Volto então ao meu chão de origem nos idos da minha infância. É daí a cepa que brota este VIDA E MORTE, OZEBINHA. MORREU OZEBINHA, também conhecida por Ozébia de Zeca. Ozebinha era uma viúva de pouca estatura, magricela, fanhosa. Parecia até que falava chorando. Pobre-pobre de marré, marré, marré, como outros e outras por ali. Ozebinha morava naquele sofrido casebre de palha. Roceira de roças pequenas e “moradeira” em terra alheia. Morava quase à beira do caminho, numa breve encruzilhada, ao fim de um “povoado” de cinco outras moradas. Criou dois filhos sozinha: Raimundinho e Zefinha, ambos de meia idade, que moravam com a mãe.
Ali, naquele lugar, quando alguém morria em circunstância que não vinha de um prolongamento do fundo da rede, dizia-se que “morreu do coração”. Era noite, tarde da noite quando D. Ozebinha deu os últimos “arquejos”. Começou com uma dor no peito que se lhe tomou o fôlego, seguido de forte dor de cabeça. Ainda deu dois ais e calou-se inerte, para sempre. Ainda era madrugada e Raimundinho, seu filho rapaz, saiu pelas casas avisando a vizinhança. “Hei de casa, hei de casa”. E era recebido pelo latido e o avanço dos cachorros. “Cala boca”, ralhava enérgico o dono da casa, impondo silêncio e recolha aos cães. Era Raimundinho lá fora e a casa fechada. “Eu vim dizer que mamãe morreu esta noite”. - Morreu de quê? Morreu do coração, responde Raimundinho.
Começava ali uma maratona que ia esticar-se por toda aquela redondeza, com o filho anunciando a morte da mãe, no sentido de que as pessoas comparecessem ao velório. E nessa caminhada, à procura de quem se lhe faça o caixão – um encargo penoso e adverso como de resto penoso e adverso era tudo ali. Vai então bater à porta de Zé Borges, um velho “carapina” do lugar. Hei de casa, anuncia-se. Hei de fora, alguém responde. Tô aqui procurando seu Zé Borges. Sou Raimundinho, filho de Ozebinha, minha mãe morreu “esta” noite. - Ah, meu filho, responde a mulher, Zé Borges tá viajando, só chega semana que entra (próxima semana).
Raimundinho, ao desespero, fala só, contorce-se, range os dentes. Ele sabe que junto ao corpo de sua mãe, ficou só Zefinha – sua irmã e mais ninguém. Sabe também que em casa só tem a água do pote e a graça de Deus. Mais nada. Nem um pó de café, nem uma “temperada de açúcar”. Tudo isso se lhe vem na mente. Mas agora é “pé pra frente”, como se diz ali. Então ele toca para outra distância, à procura de um outro “carapina”, Macico Sibuí. Macico é um jovem mexilão na arte. Quase não tem ferramentas, senão um velho serrote cego, uma enxó das antigas e uma plaina, tudo “desmazelado”. Ele sabe que “quem não tem farinha “cruêra” serve”, então ele vai dar com os costados na casa de Macico Sibuí. Hei de casa, hei de casa! Hei de fora, responde alguém lá de dentro. Cadê o seu Maciço? Tô precisando dele. Minha mãe morreu “esta noite”. Vixe Maria! Sobressalta-se a mulher de Macico. E continua: Macico tá ali pro mato, fazendo um “preciso”, responde com a voz embargada, aproximando-se da porta da rua. Então ele espera... espera até que enfim lá vem Macico Sibuí, já sambado de eventuais e semelhantes empreitadas.
Conversam e se entendem. Macico fará o caixão, mas logo avisa: não tem prego, não tem tábua, mas coloca-se à disposição. Aliás, que naquele meu lugar, “na hora da morte”, todo o mundo leva isso a sério, todo o mundo é solidário. Uns com poucas forças outros com força nenhuma. Raimundinho continua a maratona mas agora tem outro desafio pela frente: conseguir as tábuas para o caixão. No “ora e veja”, consegue tábuas emprestadas que pagará na colheita que espera do seu arroz, dentro em dois meses ou pouco mais. Agora são onze do dia. Macico Sibuí já está fazendo o caixão e vira o alvo das atenções. Até parece que as pessoas se esquecem da “finada”. Na casa, algumas pessoas. As mulheres da redondeza ajudam a cuidar do corpo, banhar, vestir. Zefinha, mal da conta de si. Também já apareceu um café com açúcar. A redondeza já cuidou disso.
Raimundinho, como de resto por ali, todos sabem que a caminho do enterro tem que rolar uma pinga para os carregadores do caixão. Tá danado! Raimundinho não tem um níquel! Mas como a solidariedade ali aflora “na hora da morte”, então a pinga aparece no abafado. Para enterrar a defunta, tem duas opções naquele meio de mundo. Cemitério de São Sebastião ou Cemitério de Santa Rosa. Vai para o Santa Rosa, depois de Nova Aurora, depois de Sertãozinho, depois de Curvão, Belas águas, São Benedito, Estrada Real. O improvisado caixão é içado em duas cordas de rede e pendurado no varal que dois homens carregam nos ombros, em revezamento. No caminho, é aquele falatório, gente suada e sem camisa e pinga rolando. Na bebedeira, uns desatinados dão o grito: “cerca lá, ôh...” O outro responde “Cerca lá, mãe das almas”. Vendo a gritaria, Apolônio de Filipão interfere: Gente, isto aqui é um intêrro, vamos arrispeitá. A gritaria se sucede e o litro de pinga vai secando.
- Agora são “quatro e pouca” da tarde. Estão todos no cemitério de Santa Rosa, quase dentro do mato. No improviso e no suor cavam a “cova”, eis que para isso já levaram facão, sacho enxada e “patacho”. E Raimundinho ali, desolado, monossilábico, cenho fechado, nem teve tempo de chorar. É linha de frente para tudo. Ele, sabe que, como filho, é quem “puxa o cordão”, quem toma a linha de frente. A tarde vai escurecendo e as pessoas estão voltando, exaustos, de pés no chão. E, no vapor da pinga, escurecendo, uns ainda se arremetem: “Cerca lá ôôôh...” Outros respondem: “cerca lá mãe das almas”. E Apolonho de Filipão sacode a cabeça e resmunga: “Tem jeito, não”. Daqui a sete dias tem “via sacra” que ali se diz “via-sáca”, uma reza esticada, chorosa e cantada. E nesta uma mesa que serve aos rezadores, sob a qual um prato de água que é “para o isprito da morta”. Tantos anos depois, as pessoas ainda dizem: “Moreu Ozebinha, mas ficou o nome na história”.
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