CEMITÉRIO
Minha mulher dedicou os últimos cinco anos aos cuidados e à vida de sua mãe, sendo que, nos dois últimos, a sogra ficou entre a cama e a cadeira de rodas, parte maior do tempo na cama, o que redobrou o desvelo da filha, vinte e quatro horas por dia, sem arredar o pé. Enfrentando esses e outros percalços em sua saúde, quando a mãe faleceu, a filha foi tomada de dores e lágrimas como se sua mãe tivesse falecido de mal súbito, tal o envolvimento e o sentimento da filha. Acompanhei essa trajetória.
Sepultada a matriarca, eis que a filha passou a dedicar suas atenções e desvelo ao sepulcro da mãe. Liderou, ao lado da irmã, a construção do jazigo, com retrato e lápide. E envolve-se pessoalmente em seus cuidados: varre, lava, limpa, acende velas, ora, põe flores, chora. Roga rezar missas. E nessa sina a filha visita constantemente a sepultura de sua mãe e eu, de carona, e na solidariedade marital, acabo por acompanhar a companheira, no que me torno testemunha desse empenho e missão. A vida tem dessas coisas.
Sempre que estou no cemitério, busco reflexões, pergunto e tento encontrar resposta que, enfim, não encontro. E nessa divagação minha mente voa entre a origem e o infinito; entre Gênesis e o Apocalipse, entre a criação e o dilúvio e nessa ciranda, chego à inefável convicção de que a vida é princípio, meio e fim. E nesses parâmetros, tenho a sensação de que ali se destacam duas estacas, delimitando limites. Limites que se limitam entre o princípio, o meio e o fim. E tenho uma breve sensação estranha, uma crise existencial.
Saio para espairecer, como costumo fazer, dando uma volta ali em volta. E fico lendo as lápides, olhando os retratos, vendo mármores, marmorites, outras que permanecem, tais como foram deixadas há um ano, dois, três anos, tantos anos e mais anos. Vejo ali a pobreza de uns que se espremem para manter o sepulcro, com os restos mortais dos seus; vejo a riqueza de outros na sofisticação da catacumba, quer dizer do mausoléu, com mensagens e datas em bronze, esfinge em alto relevo e outras sofisticações. Aí a minha mente vara horizontes para ler em Mateus, 23, quando Cristo refere-se a “... sepulcros caiados”.
Vejo tumbas que mostram as preferências, em vida, dos que ali jazem e voltam ao pó: Motocicleta, Fórmula 1, torcida de futebol, retratos, som de carro e outras excentricidades. Moradores das cercanias tiram proveito. Vendem velas, oferecem serviços, varrem, lavam, caiam, capinam, “zelam”. Tem serviçal que ganha mesada (ganha por mês). Outros que vigiam carros. Vendem lanches. Meninas e meninos completam o traste do social. Acostumaram-se a pedir. Mendicância explícita e mal-acostumada, falta de cabresto de pai e mãe. Pobreza rondando ao redor. Muitas estão a um passo da prostituição e outros tantos que desde cedo estão acostumados com a vadiagem.
O CEMITÉRIO é um terreno de tudo e de todos: ricos, pobres, católicos, evangélicos, espíritas, agnósticos, pais de santo, filhos de santo e mães de santo, embora que, no geral, todos olham o cemitério com a cara virada, evitando-o. E dele se aproximam pelo imperativo da vida. Ou da morte? Do tipo “se não vai pelo amor, vai pela dor”. Há um segmento de cristãos que acha que já tem o céu como repouso do amanhã, que escarnece e zomba dos sepulcros alheios.
Cemitério é, também, território de vândalos, desocupados; terreiro de que se servem drogueiros e drogados tal o insípido e o deserto que o local tantas vezes sugere, do que se aproveitam as aproveitadores dos dejetos do social. Por conta disso, lembro que em meio às destruições gratuitas ou a pretexto do que ali existem, com várias lápides destruídas, há nesse meio um vandalismo que me desperta a atenção. É que ali há uma sepultura construída em marmorite de estilosa arquitetura com nomes e datas de falecimento dos que ali descansam.
O demônio encarnado no vândalo supostamente drogado quebrou aquela placa, pelo mero espírito de desgraça e destruição. E como a placa restou quebrada e abandonada ao chão, à cabeceira do sepulcro, ali permanece quiçá ignorada e abandonada pelos “donos da obra, que, pelo visto, mesmo até aqui não tomaram conhecimento do vandalismo ali repugnante e vexatoriamente praticado, pelo que é de se imaginar que deixaram o familiar enterrado e não mais voltaram sequer para constatar a decepção que lhes espera.
E eu ali, no CEMITÉRIO, sentado sobre pequena tora, deixado recostadas à sombra da mangueira e refletindo sobre aquilo ali, ao considerar que o CEMITÉRIO é um rio em que corre lágrimas, dores, saudades frustrações. Revoltas, até. Esse rio, que escorre vidas vividas, escorre honras, dignidades, caráter, intelectualidades e valores outrora inestimáveis, muitos que dormiram o sono dos justos e fizeram por merecer o lugar que ocuparam sobre a face chão e, noutra ótica – os dejetos do social – destes que me reservo ao silêncio.
Agora está hora de ir embora, de deixar o local. Vou acompanhar a filha da mãe que por hoje e por enquanto cumpriu a sua missão: zelou da sepultura da mãe, acendeu velas, orou, orou e chorou. E lá vem ela com os olhos marejados e vermelhos onde posso ler ostensivamente: “SAUDADE DA MINHA MÃE”. Afinal, estamos no CEMITÉRIO. Uma coisa, porém, eu já deixei claro à filha da mãe, “quando eu morrer, não quero choro nem vela, nem mausoléu; quero a música “Na Fronteira do México” (na guitarra havaiana de Poly, em som ambiente), e um gramado em lugar de sepultura, com quatro pés de assaí nos ângulos do retângulo para lembrar um cara que costumava dizer: “... e a vida continua”.
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