O OLHAR DO PÁSSARO SOBRE O GALHO
(... uma Constituição Federal, pela “janta”)

Sete da noite. No posto de combustíveis à beira da BR o movimento é intenso. Caminhões, carretas, bitrens, automóveis, gente. Motoristas, prostitutas, mecânicos,  biscateiros, transeuntes. Uma “zueira” danada. Tem-se a sensação de um ambiente “barra pesada”. Mas não. E eu ali – o olhar do pássaro sobre o galho, questionando o social. Sou ali um passageiro do acaso.

Tem uma cachorra de mediana idade, já vi por lá outras vezes, porém ainda não havia feito a leitura. É desses animais de rua, sem dono, porém sob as atenções de uma jovem-rainha daquele reinado. Ela chama o animal pelo nome e o animal atende. Em seguida, dedica-lhe palavras de carinho e atenção e declara que  vai “servir o seu jantar”. A cadela, quieta e receptiva, balança a cauda e posta-se no limite - imóvel e comportada na grande porta de acesso à churrascaria, pelo lado de fora e não dá mais um passo. E fica à espera do seu “jantar”. Por vezes deita intocável, lá mesmo, à porta, indiferente ao ensarilho das pessoas.

Motoristas barrigudos, alquebrados e outros tatuados, transitam pra lá e pra cá.  Exibem um aspecto estressado, envelhecido, cansado. Uns que vão para o banho, outros que acabam de sair do banho; grande maioria sem camisa, outros com aquele perfume que exala à distância com direito a dor de cabeça. Aquele pátio de posto de combustíveis, típico de um formigueiro humano tem ares de continuação da casa de muita gente por ali. Afinal é lá mesmo onde vão repousar uns na boleia trancada dos seus caminhões e eventuais que armam a rede, debaixo dos caminhões. Na refrega, tem uns que falam ao telefone; outros que bebem pinga; que ficam em pé jogando conversa fora e outros que enfrentam o prato do jantar.

Enquanto isso, mulheres livres aos poucos já começam a transitar. Outras que vão direto aos caminhões: Hei, vamos fazer um programa? Hei me dá um cigarro aí. Hei, vai para o centro?, me leva. Lá adiante tem uma “figura”, ninguém sabe se é ele, ninguém sabe se é ela. Ninguém, vírgula, os estranhos. Porque a galera do local já tem a ficha. Depois o cara roda a bolsinha e vai rodando... até que para um caminhão que o leva, rumo a Açailândia, cortando o estradão. Aliás que dizem por ali que Açailândia é uma boa praça para o ramo da libertinagem noturna.

Debaixo do estacionamento coberto, destinado aos caminhões, quase à beira de uma borracharia, ali é uma “zuadeira” das quintos. Um bate marreta; outro saca-parafuso da roda do caminhão, tudo na bruta, na grossa, no poeirão. Bem ali ao lado quase debaixo de uma luminária com cara de sol do meio-dia, uma família com criança pequena, agasalha-se, arma a rede, ao lado de uma sofrida camioneta pick-up. Vão “repousar”, passar a noite,  seguir estrada ao amanhecer.

O formigueiro humano segue a sua trilha, uns pra lá; outros pra cá, naquele sarilho danado! O cara chega ao bar, pelo lado de fora e pede uma pinga.  E logo começa um bate-boca com o atendente por causa do preço e do pouco líquido no copo. Aquele outro pede uma pinga em dose dupla. Ingere de uma vez e joga a sobra ao chão, lá adiante. Aquele outro, querendo vender  uns trecos “made in china” tenta ingressar na churrascaria mas o bate-pau manda voltar na moral. Aí a vítima não deixou de graça: “isso é que é humilhação”. Pensei junto com ele.

Nesse vai e vem tem um “rapazote”, algo como 16 anos. Ele carrega um punhado de redes sobre os ombros. É um forasteiro, um vendedor ambulante; é mais um que vai fazer naquela noite, naquelas cercanias daquele posto de combustíveis, a continuação de sua casa. É ali aonde vai se agasalhar. Igual a esse tem outro mais “apanhado” com outro monte de redes sobre os ombros. Pelo visto são parceiros da mesma empreitada e do mesmo destino ali nas cercanias posto.

No meio dessa zorra passa um sujeito, carecão, pequena estatura, envergado, alquebrado, de boa idade, falando só. Achei-o simultaneamente com cara de aposentado, andarilho e esmoleu. Ele caminha manco e com o apoio de uma bengala metálica. E carrega dois grandes e volumosos sacos plásticos, do tipo 100 litros -  um amarrado ao outro, passado sobre o ombro. Logo imaginei que ali estão os seus “teres”: roupas, objeto pessoais, chinelo, essas coisas. Passa pra lá, passa pra cá, corteja a porta da churrascaria, olha para um lado e para outro, vai mais diante, torna voltar, de olho na porta da churrascaria. E  eu lá, de olho na figura!

Daí a pouco ele volta, com dois exemplares da Constituição Federal, dessas distribuídas gratuitamente pelo Governo. E vai estendendo e oferecendo a brochura  para um e para outro e soltando um bordão direto e simplista: “Me dá dez reais na Constituição Federal, é só para trocar pela janta”. E assim vai fazendo a sua praça, a sua tentativa de escambo. E desaparece. Daí a pouco ele volta só com um exemplar na mão, estendendo para um e para outro: “Me dá dez reais na constituição Federal”, é só para trocar pela janta”. E olha sedento, sofrido, doído rumo ao grande salão da churrascaria.  Daí  há pouco ele resolve melhorar a sua comunicação, a sua mídia, expondo a capa verde-amarela da brochura: “Constituição  Federal, a maior lei do Brasil; uma lei que todo o brasileiro deve conhecer. Troco por uma janta de dez reais”.  E fui embora.

E saí dali pensando na cachorra obediente e quieta, protegida pela sua protetora. E na carona, outros da mesma sorte. Saí pensando naquele formigueiro humano, na frase da humilhação; no agasalho daquela família; nos vendilhões de rede; na improvisada continuação de muitos lares; na “motoristada”, exausta e envelhecida; na prostituição explícita  e, no que mais me despertou: naquele espectro de homem baixinho, careca, manco, bengala na mão e falando sozinho que carregava duas grandes sacolas amarradas entre si e  que trocava “uma Constituição Federal pela “janta”.
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Este texto, agora “remasterizado”, foi publicado, aqui, em maio de 2014. E se o autor não tivesse CAMINHOS POR ONDE ANDEI, seria “O OLHAR DO PÁSSARO SOBRE O GALHO.