CARTA AO DR. RAIMUNDO LICIANO DE CARVALHO – EX-JUIZ  EM IMPERATRIZ

Dr. LICIANO – peço que me receba (como sempre me recebeu). No plano da eternidade, onde estiver. Tomei conhecimento de sua “passagem”, através do Joãozinho, que foi seu Secretário de Audiência e pessoa de sua confiança. Foi um impacto! Precisei me restabelecer! Embora soubesse na distância, faz tempo, do seu delicado estado de saúde. 

Em meados de dezembro/2010, faz sete anos e 5 meses, tive um sonho com você. Um pesadelo que publiquei nesta coluna, conforme o texto abaixo. Em seguida, por um amigo seu, enviei-lhe o jornal, tal era o meu desejo de contato, de reaproximação; contudo não pedi nem obtive o seu telefone. Tentei outras vias e sofri, amargamente sofri à falta de contato e notícias suas. Resta-me agora reenviar o texto que não sei se você recebeu ou se leu. E te abraçar na saudade com o abraço que agora nos separa entre a vida terrena e a eternidade. Segue o texto, conforme o original.

“ACONTECEU COMIGO”

Era aquele crepúsculo de fim de tarde, fechando para o anoitecer. E eu seguia em caminhada, passos apressados, solitário, naquela estrada de chão, também solitária. De repente qual o conheci há décadas, vejo um jovem  – e agora mais remoçado ainda! Um rosto das antigas. Era o Doutor Raimundo LICIANO de Carvalho que fora o meu professor de História, no Curso Pré Vestibular Castro Alves, final dos anos 60 e que depois tornando-se Juiz de Direito, serviu em Imperatriz durante vários anos. Mais tarde, por seus méritos, tornara-se Desembargador no Tribunal do qual fora seu emérito e laureado Presidente!

Do Professor e Juiz Doutor LICIANO que guardo saudável lembrança, admiração e apreço, logo ali naquela estrada de chão tentei cumprimentá-lo, mas ele seguia impávido em sua camioneta negra, último modelo e me ignorou solene e distante como distantes costumam ser são os magistrados. Então eu dei meia-volta na minha caminhada e retornei frustrado e solitário naquela estrada solitária. E percebo então, em seguida que, ao lado, o Doutor LICIANO seguia  lento,  em sua camioneta, tentando cumprimentar-me. E agora era eu quem o evitava.

Nessa caminhada de quem segue atônito, ofendido e moralmente ferido, quando dei por mim estava dentro de um grande galpão, uma espécie de depósito de uma empresa comercial. E o ex-professor e Desembargador LICIANO ali, ao lado, tentando cumprimentar-me. Eu que prosseguia cético, indiferente, resistindo ao cumprimento, ao mesmo tempo em que sentia-me culpado pelo desate que ali ocorria. E quando tentava sair daquele galpão vi que  estávamos “presos”, pois que as portas de acesso já estavam todas fechadas.  Já era noite também fechada. Imagine o sufoco! O pesadelo!

Trancado e perdido, vejo ali, um portão metálico (de ferro) e me pus a bater e debater e simultaneamente pedindo socorro. Executava com os dedos à boca um apito que tantas vezes usei como “arma” (recurso) nos meus tempos de colegial, pedindo parada de ônibus-coletivo. Foi nesse exasperado sufoco que quais nas lendas do gênio da lâmpada, me aparecem dois cidadãos. Eram os vigias do estabelecimento fechado em que eu e o Doutor LICIANO estávamos “presos”. Um deles veio para o diálogo; o outro em cobertura, recuado mantinha-se sisudo, calado. Expliquei-lhes então a situação e apontava como “álibi”  aquele cidadão ao lado, um magistrado aposentado.

De imediato o vigia usou um rádio-comunicação  e comunicou-se com sua patroa, aliás uma ex-cunhada. Seguem-se os constrangimentos, mas logo veio a ordem de liberação. Segue o Dr. LICIANO em sua camionete; sigo eu em ritmo de cooper em rotas paralelas. Percebo então que ao longo do percurso, dentro do grande galpão redes armadas com gente deitada – que ora eu transpunha pulando por cima, ora passando por baixo.

Finalmente, lá adiante, dois grandes portões metálicos abertos, desses com movimento horizontal, permitiam que o Dr. LICIANO em sua caminhoneta e eu em cooper, tivéssemos acesso à liberdade, lá fora. Finalmente!!! Ocorria entanto que mesmo ao ponto da “liberdade”, agora  ali respirando um novo ar, não houvera  um clima de encontro, sequer de cumprimentos. E assim o Doutor LICIANO e eu permanecíamos calados, sem dizer uma única palavra...  E LICIANO desaparecia dali, deixando, porém, a minha mente impregnada de tantas lembranças ao seu redor! Ele que fora meu professor e depois juiz em causas do meu patrocínio.

Bem ali e por tudo aquilo ali, eu reconstruía doído na mente, lembrança de um LICIANO, eternamente modesto, pacato, pé no chão, acessível, simples, jogando dominó à brisa da Rua Sousa Lima, nas tardes de fim de semana, extra fórum. Ele que deixou o magistério em salas de aula pela toga da magistratura. Ele que tantas vezes julgou feitos  criminais, nos quais eu patrono, intercedia e subscrevia. Ele que ao cedo das  manhãs em dias de domingo, em bermudão, sacola nas mãos eu o via rumo à feira do Mercadinho. Ele mesmo que com sua caneta  concedeu liberdade a pacientes meus, tanto quanto os manteve ergastulados na prisão ou julgado pelo Tribunal do Júri. Ele mesmo na beca de magistrado que um dia me disse que antes da escolaridade e do seu grau, chegava a “quebrar uma lata de coco” (18 litros) ao dia, lá no seu chão de origem, no seu MIRADOR para onde voltara, depois da aposentadoria como desembargador. Não sabendo ele que aquela  quebra de “uma lata de coco ao dia”, haveria de ser um tema que me marcaria para sempre. Amém!

Naquela situação, recém saídos do galpão mas ainda constrangido, dominava-me a angústia ao reconstruir na mente aqueles momentos em que estive preso no galpão trancado; os vigias – que surgiram qual o gênio da lâmpada; aquele outro sisudo, fechado; o apito com pedido de socorro; o corre-corre passando por sobre as redes ou debaixo delas; aquele encontro no começo da trilha onde se estabeleceram indiferenças e feridas. Logo sem seguida perdi o LICIANO de vistas e permanecemos na indiferença que fere o amálgama da sensibilidade humana. E só ai eu despertei daquele terrível pesadelo! Eu estava sonhando!

* Viegas é advogado e questiona o social. E sempre teve respeito pela humildade, pelo verbo simples e pela intelectualidade de RAIMUNDO LICIANO DE CARVALHO – o cidadão, o professor, o Juiz, o Desembargador. O presidente da Corte – que  agora descansa em paz!