A LENDA DO BOTO: SALVADOR E MATADOR
JERÔNIMO DE JOANA era um legítimo afrodescendente. Filho de “Joana de Gi”, neto de Gil de Campos e “mãe Carolina”, esta que apregoava com sua voz e sotaque afetados que ainda pegou “uma pontinha da escravatura”. Também bisneto da velha Processa, que foi escrava de sol a sol. Viviam todos numa pequena comunidade de uns quatro ou cinco casebres, nas terras que, demarcadas e vendidas pelo Estado, vieram a pertencer ao latifundiário Mundico do Sertão, que enlaçou os velhos e antigos quilombolas, sem dó nem piedade, a ponto de impedi-los que se utilizassem, mais tarde, de uma simples árvore ainda que à beira de seus casebres – árvores que as viram nascer e crescer. Injustiças sociais sempre existiram.
E, nessa mesma comunidade, o DIOLINDO, igualmente afrodescendente, pai de uma trinca que se multiplicou por tantos outros que puxaram ao pai, bem como avô cujos netos também lhe puxaram. Falante de sotaque afetado este que, quando com umas três no juízo debulhava suas falácias que soavam aos quatro ventos por ali. DIOLINDO bebia seus grogues e seus verbos emplacavam nas línguas do lugar.
Voltemos a JERÔNIMO. O rapaz de meia idade era um humorista nato. Tivesse tido uma alavanca na vida, poderia ter sido contemporâneo de um Chico Anysio, Costinha e outros da mesma cepa. Tudo quanto dizia, proposital, tinha sabor de humor. Ele tanto sabia quanto provocava. Eu que o conheci ainda na minha infância, sobre ele já escrevi vários textos, cada qual com o seu viés, sua leitura. Inspirado nos ditérios desse humorista da beira de paupérrimo fogão de lenha e porteira de roça, é que escrevo agora este texto.
Eu deveria estar aos doze anos, concluída a primeira série ginasial, na capital, quando cheguei de férias, em casa, naquelas encostas de meio de mato e fim de caminho, onde eventualmente passava alguém ou porque perdeu o caminho, ou porque procurava um animal perdido. Logo vi que em meio aos trabalhadores a serviço da roça de meu pai, estava JERÔNIMO DE JOANA, “arranchado” em nossa casa. Houvera trocado dias de serviço por quilos de carne, consoante a prática da época naquele sertão sem escola publica, sem estrada, sem um posto médico e sem mais nada.
Eram uns três ou quatro trabalhadores. JERÔNIMO pareceu-me o mais falante e chamava as atenções sobre si. Dormíamos todos num cômodo que ali chamava-se “sala”, em suas redes atadas às paredes. Nas noites, à precária luz da lamparina, cada qual na rua rede, JERÔNIMO recitava de cor histórias de cordel; contava lendas e bravatas de Virgulino Lampião. A gente que não tinha nem rádio nem TV, nem luz elétrica, nem um livrinho de desenho animado, tornei-me então, até onde ali ouvi, “fã” de Lampião, o cangaceiro do sertão nordestino. Numa dessas o nosso personagem contou o que mais tarde vim a entender como A LENDA DO BOTO – SALVADOR E MATADOR.
Contava JERÔNIMO que se uma pessoa sofresse um naufrágio, em águas grandes aparecia um BOTO e ajudava a pessoa a salvar-se, deixando-o em terra firme, na praia, até que lhe viesse alguém em socorro. Se a pessoa voltasse às águas e, novamente em perigo, o BOTO, novamente, ajudava-o a salvá-lo, deixando-o em terra firme. E se essa mesma pessoa, voltasse, novamente às águas e, novamente em perigo, agora era BOTO que encarregava-se da “fatalização” do elemento, como dirá o repórter Raimundo Roma, por aqui.
Terminada a peroração e já com os circunstantes sonolentos, apagava-se a lamparina e aí vinha um ritual de despedida: Um dizia: “boi noite”, o outro respondia “boa noite”; o outro atacava; “com Deus passemo a noite” e outro respondia “com Deus amanhicemo”. Eu, naquela altura, sem nada interferir ou perguntar, entanto, ficava me questionando duramente: “Como pode um BOTO salvar um pessoa, afastá-lo do perigo, deixá-lo em terra firme e o náufrago voltar ao mar em situação de risco”?
Mais intrigado ainda, era, na minha mente, o náufrago voltar às águas mais uma vez e até mais outra vez e neste caso, o BOTO que lhe serviu de um anjo de resgate, ele mesmo ocupava-se da “fatalização”, do indivíduo. Eu aceitava de bom grado e feliz o verbo de JERÔNIMO DE JOANA naquela versão heroica e salvadora do BOTO, mas não conseguia assimilar o comportamento suicida do náufrago que, insistente, voltaria às águas, onde estivera à beira da morte.
Tantos anos se passaram e um dia me cai qual uma carapuça na cabeça a versão de JERÔNIMO sobre o BOTO. É que um irmão mais velho adotou um irmão mais novo, em sua companhia. Pô-lo na escola, custeou os estudos e toda a sua vida. E o jovem irmão não queria nada com a vida. O mais velho insistia, catequizava e o mais novo nem aí. Aí o irmão mais velho mandou o irmão mais novo, como veio, para os quintos de onde veio. Olha o BOTO tentando salvar o náufrago e este um suicida escapando da terra firme e voltando às águas revoltas, da vida!
Ocorreu então que outro irmão, vendo aquela “devolução” daquele jovem náufrago, vestiu-se de BOTO, tomou as dores, resgatou o irmão mais novo e assumiu-lhe a paternidade com todos os encargos e todas as honras. Colégio particular, roupas de marca, curso de inglês e tudo do bom e do melhor. OLHA O BOTO! Mas o rapaz era mesmo um náufrago suicida e ainda que colocado em terra firme com todo o conforto; apartamento com frigobar, mil e um petiscos, TV e ar condicionado e até chuveiro quente como o de LULA na improvisada e incômoda carceragem da Polícia Federal, tava nem aí. E, suicida, brincava nas ondas do mar revolto, em perigo, novamente. Aí o BOTO que cuidou de sua salvação, ele mesmo abandonou-o para sempre nas águas do mar da vida e devolve-o aos “quintos”, de onde saiu.
Hoje (semana passada), quando acabo de escrever sobre a LENDA DO OLHO DE BOTO, lembrei-me de JERÔNIMO DE JOANA, aquele afro descendente que, trocando dias de serviço por quilos de carne, nas noites contava histórias diversas, inclusive esta que vem a ser A LENDA DO BOTO – SALVADOR E MATADOR.
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