“NÃO ESQUENTA... NÃO ESQUENTA...”
Dono de um olhar que se alterna – ora evasivo, perdido em seus próprios horizontes, como quem olha para lugar nenhum; ora circunspeto, inseguro. Assim é aquele homem, um novato desocupado, ocupante das ruas da cidade. Faz nem tanto tempo que o vejo por aí. Não tem companhia/s. Costumo vê-lo em dois pontos distintos: Na Rua Godofredo Viana, esquina com Benedito Leite, e na Rua Manoel Bandeira, esquina com a Getúlio Vargas. Soube, também, que perambula na noite em pontos populares.
Esse homem me causa fundas impressões. Múltiplas questões que confundem o meu ego cristão e cidadão – humano que é. Ele anda invariavelmente só, sozinho. Não é de carregar saco ou coisas. Não tem aspecto de drogado, nem de alcoolizado. Não tem vestígio de quem se deita ou dorme ao chão. Também não é de pedir. Faz as barbas e não há registro de incômodo às pessoas. Veste-se regularmente, ainda que sempre as mesmas roupas, e traduz um aspecto medianamente asseado. Imagino que tenha um endereço de pernoite.
Pontos fora da curva existem no quotidiano cristão. Costuma usar uma “cobertura”, feita de uma camisa sobre a cabeça, como fazem os ajudantes de construção civil, protegendo-se do sol. E então, nas manhãs e nas tardes, agacha-se na esquina da Rua Godofredo Viana com a Benedito Leite, com pose de pintor escultural, toma uma caneta e papel, olha para um ponto fixo – um carro estacionado, por exemplo e, “concentrado”, põe-se a desenhar. Olha para o carro, num gesto de franco raciocínio e lógica e... desenha uma guitarra.
Outras vezes, variando do desenho, ele igualmente “concentra-se” e põe-se a escrever, sabe-se lá o quê(?). Dizem as pessoas que circunstancialmente o têm observado que ele tem uma boa caligrafia. Executada a sua “tarefa”, na esquina da Rua Godofredo Viana com Benedito Leite, sempre agachado, ora pintando ora desenhando, ora escrevendo, ele parte para a próxima etapa com a mesma postura e os mesmos afazeres – agora na Rua Manoel Bandeira, esquina com Getúlio Vargas. Olho para esse homem ora num lugar ora noutro e a minha alma cristã entra em conflito, diante das lacerantes imagens e ideias que me vêm desse cristão. Imaginário que a avassala a minha mente voltada para o questionamento social. Imagino que esse cara “um dia foi gente” e teve o seu lugar na vida. Não sei.
Agora o dia vai fechando. Pouco mais de meia, caminhando para as seis da tarde. Um véu turvo, no espaço vai tomando conta da cidade, promessa de chuva para pouco mais. Esse mesmo véu se completa com a noite que está chegando. Bem ali, novamente, eu volto a ver aquele homem, dono de um olhar distante, inseguro, perdido em seus próprio horizontes, olhando para lugar nenhum. Lembrei-me então que dia desses, Semana Santa, na Santa Missa quando eu ouvia um hino que dizia: “... Meu Deus onde estás que me abandonaste”, eu tive a sensação de que ali estava aquele homem fazendo essa pergunta, esse clamor!
Eu que, outrora, passei tantas vezes por esse homem, a minha covardia humana desaconselhou-me a aproximação. Afinal, cultivo a lição que me ensina que “ninguém conhece ninguém”. Preocupava-me uma reação, uma agressão até porque ele costuma mourejar em locais próximos do meu convívio pessoal e então usei terceiro para a aproximação. O relatório (impressão) que me foi repassado, não deu outra: Olhar inseguro, indeciso, desajustado psíquica e psicologicamente. Também fala “coisa com coisa”. Declara-se procedente de Goiânia e está aqui para resolver uma situação e diz que “logo logo” estará tudo resolvido. Nunca pede nada ao seu interlocutor nem a ninguém, mas costuma ficar à espreita em pontos de alimentação. E encerra qualquer locução com uma frase: “Não esquenta, não esquenta”.
Resolvi então me aproximar do personagem. Numa manhã de sábado, na esquina de Manoel Bandeira com Getúlio Vargas, já de frase pensada, me aproximei: Peguei uma cédula, parei o carro e estiquei: “Olha aí mano, pega um lanche”. Ele agradeceu e soltou o seu refrão: “Não esquenta, não esquenta”. E fui embora. Pronto! Eu estava “fichado”. E todas as vezes que eu passo por ele, às pressas, percebo que ele me reconhece e ao seu modo registra a minha passagem. Era Sexta Feira Santa! O sol já caia no horizonte, aproximando-se da noite, E lá está aquele homem na esquina de Manoel Bandeira com Getúlio Vargas, agachado desenhando, escrevendo. Ali mais no que nunca a minha alma gritou. E me pediu para voltar. Insisti e continuei seguindo.
E tomei uma decisão: “Preciso ajudar esse homem, fazer alguma coisa apor esse homem”. Cheguei em casa e com a boa vontade e colaboração da minha mulher, preparamos um lanche reforçado! E voltei. E entreguei. Ufa! Ainda bem ele ainda estava lá! De posse do lanche ele me agradeceu, e soltou o seu refrão: “Não esquenta... não esquenta”. E, novamente, voltou a agradecer. Saí dali e a minha alma de questionador do social continuou ruminando, falando sozinha. E cobrou de mim: “Ajuda esse homem”.
Pronto! Naquela noite, parte da noite, os meus desvarios da mente ocuparam-se daquele semelhante. Eu que já tinha a ideia, então lhe providenciei lápis, borracha, apontador de lápis, agenda, prancheta e papel A-4 e pautado. E levei-lhe numa pequena sacola dessas de butique. Ele não se interessou, mal olhou na minha cara. “Deixa pra depois, deixa pra depois”. Fiquei desapontado! Mas justificou-se alegando que não gosta de carregar coisas e mostrou-me, incomodado, que já tinha uma (pequena) sacola de roupas para carregar. Contudo, me fez uma insistente pergunta: “Posso receber depois?”. E arrematou: “Não esquenta, não esquenta”. Sobre o tema eu volto depois, me aguarde/m. Porque “quem viver verá”.
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