A SAGA DO VELHO MATIAS

Quando eu fui estudar em São Luís, tendo que primeiro enfrentar o Exame de Admissão ao Ginásio, fui morar na casa de SEU MATIAS que, com sua mulher, Dona ZêZê, eram compadres dos meus pais. Seu Matias, contudo, era tão pobre quanto o meu pai, dada a numerosa prole e aderentes que tinha para sustentar. 10 filhos, mais marido e mulher, mais uns quatro aderentes, mais o cunhado – havia dia/s que tinha dezoito e até vinte pessoas na casa para o de comer. Não era fácil aquele labuta.

Seu Matias morava no sofrido bairro do João Paulo, marcado pelo gueto das prostitutas, venéreas, cachaceiros, encrenqueiros, diambeiros jogo de bicho, rufiões, vadios, mercado do sexo, jogatina, rostos latanhados com garrafas quebradas, tufões de cabelo e outros do ramo. Ainda assim, e apesar dos percalços, era como se morasse a centenas de milhas dali. A sua modesta casa, em taipa e palha, sem água e esgoto, situava-se na Rua da Malária, também conhecida por Rua da Vala, tal ali existente uma vala convexa, a céu aberto, expostas  aos percalços de toda porte. Por perto, um corredor de casa de mulheres livres e logo mais adiante, outra casa apinhada de mulheres de “vida fácil”, por todos os cômodos. Mas, ainda assim, esse mulheril não afetava os contornos domésticos do velho patriarca.

O percurso entre a rua principal e a paralela Rua da Malária, aquilo era um tormento, tais os socavões, o precipício, as crateras, os desníveis, o esgoto a enxurrada que por ali se desdobravam. No inverno, aquela travessia era aterradora com risco do indivíduo escorregar, cair e ser arrastado pela correnteza entre pedras, lixo e esgoto. E nas noites escuras era um desespero. Mas ainda assim, sujeitos às inevitáveis intempéries, era um salve-se quem puder. E todos acabam superando aquilo, sãos e salvos, até porque, na época não de falava em roubo, estupro ou assalto. Acredite!

SEU MATIAS era aquele brasileiro, sangue quente, língua solta, que, no seu ofício ao calor da vida, tomava duas e era como um trator que passava sobre quem trastejasse. Não era briguento, nem encrenqueiro, nem tinha ficha na polícia, não violento, não usava arma de fogo; apenas sua peixeira de serviço  mas era duro na queda, firme no eito. E se precisasse “encarar”, ele não precisava mudar o passo. E nas ocasiões de folga ou solenes, lá vai ele de  linho branco em mangas compridas.

Seu Matias tinha três fontes de renda, quatro, aliás, para dar o de comer diário para dezoito e até vinte pessoas: nas noites era vigia do cemitério, durante o dia tinha duas carroças: uma em que trabalhava; outra em que trabalhava um carroceiro auxiliar. E a outra fonte vinha de um porco reprodutor, ou  como se dizia: um barrão. Era um porco de raça “duroc”, grandão. Tinha duas ou três fêmeas à sua disposição e os leitões em volta. Matias alugava o barrão para a reprodução. Recebia no ato pela concessão.

O velho Matias era uma pessoa despojada, justiça se lhe faça. Todo o dinheiro que recebia do seu salário de vigia, além das férias de suas carroças e os “cachês” provindos do seu barrão, ele entregava religiosamente à sua mulher, Dona ZêZê, que administrava fielmente os recursos com o sustento da prole e dos comensais. E se o velho Matias enfrentasse uma arrelia, uma zanga, uma bronca e daí ficar “envenenado” e valente bastava sua mulher Dona Zêzê intervir. Pronto! A fera transformava-se em instantes num cordeiro manso, passivo,  entregue. Era assim!

O barrão, suas porcas e seu leitões viviam soltos por aí. Precisavam de uma ração como mandioca, milho e outros sólidos que o velho Matias não dispunha, senão por vezes, uma tal de “lavagem”, que era a sobra de comidas de  restaurantes e outros. E, para complemento para não perder o vínculo doméstico dos animais, ele adquiria  “cuim de arroz”, que dissolvia na água e formava uma pasta que servia aos seus porcos. Aquilo era como um pingo d’água no oceano para aquela galera faminta  em que não há ração que chegue.

O velho carroceiro, então, punha a ração numa grande vasilha, afugentava o barrão e deixava que primeiro comessem as fêmeas e leitões e só então permitia que o reprodutor se aproximasse pois ele, sozinho, comia pelos demais. Numa certa manhã, Seu Matias repete a rotina da ração dos seus suínos mas antes de dar tempo ao tempo o  reprodutor eternamente faminto, atrevido e violento  investe, dá porrada em todo o mundo, expulsa todo o mundo, mete os pés na vasilha  e derrama tudo.

Matias, de posse de um porrete tipo um caibro reforçado, deu uma cacetada com o potencial de sua força no “pau do focinho do barrão”, este que deu um grito que sacudiu uma banda do Bairro do João Paulo; que ficou inerte e tremendo ali mesmo! Em seguida, trêmulo, deu  quatro ou cinco passos para trás. Afastou-se e continuou a tremer estático, no mesmo lugar. O velho sangue quente então, pê da vida, juntou a ração derramada, colocou dentro da vasilha então revirada e chamou a porcada, mas antes deu um grito. Devagar!!! E repetiu: “DEVAGAR”. Os porcos puseram-se a comer sofregamente, como de costume.

Enquanto isso, o barrão aos poucos se desfazia da tremedeira, mas continuava estático, olhando os seus parceiros se refestelando na comilança. E Matias ali pê da vida, com o porrete na mão e de olho no barrão. E quando bem quis, foi lá e bateu no beiço da gamela e chamou barrão: VEM... VEM... VEM... O barrão caminhou lentamente e passou a comer lentamente, calmamente,  como se estivesse de posse de garfo e faca em mesa com cobertura de toalha branca e luz de candelabro.

A partir daquele dia, a “mesa de refeição” da porcada nunca mais foi aquele desespero de outra. Velho Matias punha a ração na gamela e bradava para o reprodutor: ESPERA! Chamava a porcada que comia adoidada e o barrão ali, na retaguarda, quieto, parado, parecia uma estátua de sal! E Matias ali, com o porrete nas mãos. Até que abusando da tolerância, chamava  o seu reprodutor: VEM... VEM... VEM, oportunidade em que o barrão caminhava lentamente, comia como se estivesse com garfo e faca à mesa com cobertura de toalha branca e lá em cima luz de candelabro. E nunca mais, nunca mais se atreveu à violência e aos estragos que costumava fazer na hora das refeições. Santo remédio! Era o velho Matias, em mais uma das suas...