A SAGA DE PAULO DE ZÉ DE COTA
Paulo era filho de Zé de Cota. Paulo era um roceiro como qualquer outro, vírgula, trabalhando na roça mas de olho na cidade, na capital. A roça estava em Paulo, mas Paulo não estava na roça. Paulo via que aquela vida de sol a sol, de toco a toco, de capina em pé de mato por pé de mato, “limpação de coivara”, arrancação de mandioca, “fazição de farinha” na beira do forno era uma labuta que ele não queria para si. E então, na lidas de roceiro, tocava na marra e “comia tampado”, como se dizia.

Paulo era um rapaz de razoável aparência, metido a bonito e  “dançador” (bom nas firulas de dança naqueles barracões de chão batido); bom de papo e chegado num rabo de saia.  Com aquelas suas “virtudes” – Paulo de Zé de Cota não se conformava com sua vida de roceiro e vivia de olho na cidade, na capital. Paulo sabia, como sabiam todos ali que um sujeito na capital, ao voltar ao seu chão, ganhava prestígio, ganhava nome e pose de “turista”. E então a cidade, a capital, era o sonho da sua vida.

E não deu outra! Numa madrugada fria, quando o bacurau ainda cantava aqui e ali, no caminho, à frente dos caminheiros, Paulo arrumou as trouxas, pegou o caminho de terra e barro e já na VILA, pegou a lancha e se mandou pra capital. Mas e na capital fazer o quê??? Paulo mal sabia ler e assinar o nome, não tinha mão de obra  e tudo o que mal sabia eram as tarefas de roceiro. Bate cabeça pra cá, bate cabeça pra lá, afinal ele tinha que arrumar o “de comer”. Mas a vida na cidade, embora tendo um milhão de coisas que ele jamais tinha visto em sua vida, contudo não tinha dinheiro sequer para pegar um ônibus e muito menos para o “de comer”.

Bate cabeça pra cá, bate cabeça pra lá, Paulo acabou indo pedir um trabalho de SORVETEIRO. Era uma sorveteria de fundo de quintal, um ambiente insalubre, chão molhado onde ele, para trabalhar, deveria ser empregado de si mesmo e patrão de si mesmo. E agora durma e acorde com uma zoada dessa! Como assim??? Seguinte: ele comprava os produtos de fabricação do sorvete; também comprava as “casquinhas” do sorvete. E tudo ia devidamente anotado tim tim por tim tim, pelo português. E então, no fim das jornada de cada dia, Paulo prestava contas. E recebia o seu.

O trabalho de SORVETEIRO era um troço das calendas dos infernos. Tão cruel quanto o serviço de roceiro. Tinha que chegar ainda na madrugada. Começava por trabalhar a/s frutas ainda “in natura”, depois ia “bater” a polpa, num serviço interminável até transformá-la em sorvete. Uma mão de obra das calendas dos infernos. Mas até aí era fichinha! Depois do sorvete pronto, punha-o dentro de uma vasilha cilíndrica em aço inoxidável, colocava a vasilha com sorvete dentro de uma “tina de madeira” esta já saturada pela água da vida inteira e revestia (por dentro) de gelo misturado com sal, para dar sustentação ao estado do sorvete.

E então pegava aquela “tina” com sorvete e mais  uma vasilha em meia lata contendo as “casquinhas” em trigo, douradas; tão saborosas quanto o sorvete, que as pendurava na tina e lá se vão vinte e tantos quilos. Empunhava aquela geringonça sobre uma grotesca rodilha, punha tudo na cabeça e tocava-se rua a cima, rua a baixo, ladeira a cima, ladeira a baixo pelas ruas da capital. E a cada freguês, era um sobe e desce daquela geringonça. Um trabalho das calendas dos infernos.

E quando dava três e meia, quatro da tarde, PAULO vinha rodeando... rodeando..., até chegar ao ponto de partida de onde saiu às nove da manhã. Lá, prestava contas, pagava o devido e recebia o seu “coado”.  E, bolso! Era um trabalho das calendas do inferno mas garantia o dinheiro do ônibus, o “de comer” e assim ia juntando os seus trocados. Olhava para trás e via que tinha dinheiro no bolso, coisa que não dava para juntar nos tempos de roceiro. Trabalho das calendas do infernos mas, Paulo de Zé de Cota regozijava-se de estar muito melhor na vida. E estava!

Deixa porém que, PAULO DE ZÉ DE COTA, na capital, naquele trabalho das calendas, bom de festa, bom de papo, bom de dança (dançador) e ainda metido a bonito, estava de olho nas festanças do interior de onde saiu  da roça. Aquilo dava uma saudade de matar! Gonçalves Dias naquela de “não permita Deus que eu morra/ sem que volte para lá”, perdia era feio!!! Lembrava-se das festas da Conceição, das festas de Bumba-boi de Generosa, das Festas de  São Sebastião,  das novenas  de café com bolo e... e... daqueles bailes de rabeca (violino) do tocador Zé de Bule, naqueles barracões de chão batido. Aí o cara ficava doido. E a gente tem mais é que entender. Afinal lá no roçado, ficou a sua origem,  o seu umbigo, a sua gente e... e... aquelas cabrochas com quem ele disparava a sua sanha e firulas de dançador.

De tempos em tempos, PAULO DE ZÉ DE COTA voltava ao seu chão de origem, esnobava dinheirinho na “porta de baile”, pagava doces e guaraná para suas vítimas e pretendidas e volta e meia pedia uma cerveja “estupidamente gelada”. Terminada a festança, dinheiro ao fim, PAULO voltava para aquele trabalho e vida de SORVETEIRO, uma ginástica diária das calendas dos infernos. E assim PAULO foi fazendo o seu pé de meia, no grito, na marra e no tapa, até comprar um cavalo com sela, com arreios, e cochonil. Aquilo, naquela época era qual com um carro zero quilômetro, de hoje!!

E então, quando PAULO DE ZÉ DE COTA, de tempos em tempos, voltava às festanças de sua terra, chegava  montando em cavalo arreado, coxonil branco, roupa boa, todo ensapatado e ainda por cima com sorriso fácil, exibindo obturações e dentes de ouro. Diziam as más línguas dos invejosos e dos “condoídos” que tudo o que Paulo tinha, estava ali na festa: cavalo arreado, o terno de roupa boa que vestia, o sapato e o ouro da boca. E Paulo nem ai! E nem parecia e até se esquecia daquele ingrato e sofrido e cruel trabalho de SORVETEIRO, aquela mão de obra das calendas dos infernos.

Faz algum tempo, procurei esse personagem que ainda morava na mesmo lugar de roceiro, denominado “Conserva”, naqueles confins, porém aposentado como trabalhador rural. Ele não estava. Queria lembrar o velho tempo das calendas. Queria ver o que ele diria. Depois liguei, gastei os bônus, os créditos e mais um “carrêgo”, só ele falou e não me deixou falar. Fique pê da vida. Um mês depois voltei a ligar, já fui com a intenção de pedir licença para falar, mas aí já era tarde. Paulo despediu-se deste chão para a vida eterna, encerrando-se sobre esta terra  A SAGA DE PAULO DE ZÉ DE COTA.