“ANCURETA” – 2ª Edição
Tenho o indomável hábito de reescrever e dar nova dimensão aos meus velhos textos. É como dar banho, tosar e acariciar a minha cria. É podar e rejuvenescer o meu plantio. É como se numa lavoura eu me reencontre comigo mesmo ali, numa espiga de milho, num pé de mandioca ou num veio do curso de um velho caminho. Ou ainda ao recavar uma velha cacimba de água. Sou assim! E este texto é isso aí.

A ancoreta é um objeto de que tenho notícia, mas não tenho qualquer intimidade. Trata-se de um utensílio feito em madeira, borracha ou plástico com a finalidade de estocar líquido/s: água, cachaça, mel, vinho ou outros assim. Nos caminhões e autocargas do passado, era costume ver uma “ancoreta” na parte inferior das carrocerias dos veículos; de fácil acesso e sujeita aos solavancos dos carros. Destinava-se ao armazenamento de água potável para o consumo humano. Hoje, ao que percebo quase não mais se vê  ancoretas sob carrocerias de caminhões, ainda que destinadas às antigas finalidades.

A propósito deste texto, vou ao DICIONÁRIO PRIBERAM na WEB e este me traça a reposta: “Ancoreta – barril de forma achatada, geralmente para transportar vinho ou aguardente”. Não satisfeito com a resposta, vou ao meu velho DICIONÁRIO CAPA PRETA, que me acompanha fiel e amarelecido desde setembro de 1969 – faz quarenta e oito anos - e lá está: “ancoreta:  pequeno barril chato para o transporte de vinho ou aguardente”. De minha parte acrescento; “...barril pequeno de forma côncava e cilíndrica”.

Qual na canção  “Feira de Caruaru”, de Luiz Gonzaga, quando questionado o Mestre Vitalino a respeito de que outros bonecos e artes em barro não eram de sua lavra mas de outros artesãos, contudo intitulados “... de mestre Vitalino”, responde o decano: “TEM NADA NÃO..  tudo irimão”. Prosa à parte, voltemos à ancoreta. O chão onde deixei o meu umbigo  onde desejo voltar ao pó e que para lá tenho voltado constantemente ao longo de oito anos em cinquenta viagens e onde construo, por todos esses anos dentro do mato,  homenagens aos meus ancestrais (meus pais, avós, tios, padrinho, madrinha), além dos pranteados decanos do lugar, é uma seara pobre em água. Paupérrimo, no verão! Situação que alterna-se conforme os lugares e o rigor da seca.

Lá não existem rios ou fontes ou riachos perenes. A água do uso e consumo de lá vem dos cacimbões que ali se chama poço – que são cavados no braço; que costumavam ficar distante das casas à busca da melhor localização mas que por último, costumam ficar mais próximos das residências. Deles que tem  sete, oito, dez metros de profundidade e, ainda assim, não tem boa qualidade para a ingestão, obrigando as sofridas mulheres roceiras, outras aposentadas, desdentadas ou grávidas e mais que sexagenárias a caminhar distâncias e a carregar sobre a cabeça o “líquido da vida”. O que, aliás, sempre o fizeram desde a mais tenra idade – tema que já me rendeu texto/s que desenham a vida real e o sofrimento, naquele meu lugarzinho pequeno e pobre. Hoje porém, mais abastado, com as aposentadorias rurais.

No verão, então, a situação é mais difícil e sofrida. Alguns poços secam e as pessoas ficam obrigadas a buscar água em cacimbas distantes e outras que se localizam em “grotilhões”, com íngremes e arriscados declives/aclives, além do iminente perigo tanto na descida com a vasilha vazia quando na subida com a vasilha cheia. Ao todo em 12, 15, 18  litros d’água. Enfim, um lamentável sofrimento de que aquela gente se ressente durante os períodos de verão, com a escassez de d’água, bem como a pobreza de vasilhames para a condução e estoque. De tal sorte que, ali, um balde de 20 litros ou vasilhame semelhante desses que se compra por aí,  por cinco, sete ou dez reais, ali é um utensílio de primeira necessidade e, se convertido num presente, aí sim: “um presente inestimável”.

Consciente desse sofrimento, sempre que vou à minha terra, entre outros, costumo levar vasilhames em plástico que os distribuo gratuitamente à vizinhança: baldes de tinta ou de margarina (vazios), vasilhames de água mineral e outros similares. Vejo então a festa e o brilho nos olhos de quantas se fazem aquinhoadas com a vasilha. Nessa maratona, tenho também os meus depósitos: tambores e plástico e como caixas d’água. É como diz Falcão, humorista e dublê de cantor: “o dinheiro não é tudo mas é cem por cento”.

Em tal situação acabei emprestando um tambor de 200 litros a um vizinho-distante quando da construção de sua casa. Terminada a obra ele cedeu-o à sua sogra que com o tambor ficou por algum tempo até que... dele voltei a precisar. Percebi então que a mulher ficou “apaixonada”, “doente” e INFELIZ ao ver o vasilhame escapar de suas mãos. Via fugir de sua posse aquela preciosidade, aquela “ancureta”, como ela mesma dizia. Levei-lhe em seguida outros baldes menores, mas a “paixão” não se desfez. Percebi no seu gesto, no seu olhar.

Faz algum tempo voltei à minha terra. Parei em frente à dita mulher, agora numa “padaria” de fundo de cozinha, em piso de terra e parede de barro, que só agora tem lá naquele chão. Outra preciosidade! Um tema para depois! Foi aí que a dita e cuja mulher, esfalfando-se, resfolegando-se, sôfrega, veio correndo em minha direção. Fez um gesto de medida à altura do seu busto e queria uma “ancureta” daquele tamanho. E sentenciou: “com uma “ANCURETA” dessa, adeus à penúria de água, tô feita pelo resto da vida. A “ancureta”, da qual ela tanto se agradou, comporta 190 litros de água. Mais do que um objeto, um rasgo de saída para a sua penúria à falta d’água. Fico vendo então sobre o conceito, o sentimento que pessoas apontam à “felicidade”.

Certa feita, por aqui, um esperto ensaiava um programa na TV, pelo qual suas vítimas concorriam a singulares bijuterias, num tal “jogo da forca”. Num jogo bobo, ganho o prêmio; ele perguntava: “Está feliz”? E as pessoas confirmavam a felicidade. Por aqui vejo uns eventuais “sortudos” de fim de semana que, sorteados, eles se expõem ao risco do assalto como garotos/as propaganda para afirmar que estão “felizes” pelo naco recebido. Vejo então que a “felicidade”  nessas bocas é uma vulgaridade, uma  banalidade – diferente daquela mulher que respirava ansiosa em adquirir uma “ancureta” para a sua água de sobrevida. Ela que vive na pele o drama da escassez da água, ela sabe que uma “ancureta” daquela à altura do seu peito, é um precioso bem a serviço da vida.