UM “MODELO” DE  SERVIÇO PÚBLICO
Aquela repartição do serviço público era um modelo, um exemplo a ser seguido. Probidade, transparência, honradez, zelo para com valores e patrimônio público. Tudo rigorosamente em cima da fivela e dos padrões ali adotados. E ai de quem transgredisse ou tentasse transgredir o preceito. A regra era tão cautelar que o desvio de um simples lápis poderia ensejar uma justa causa, tais os rigores da administração pública que ali se impunha. De anotar, entretanto, a ciranda e espiral da burocracia que ali reinava, porque absolutamente tudo ali era controlado nos papéis nos documentos  de múltiplas vias, pelos intensivos formulários que a máquina controlava. Mercê ainda de salientar que o órgão nasceu e viveu a partir de um “modelo americano”. Uma verdadeira enciclopédia, contendo as regras daquele Serviço Público.
Todo aquele gigante era capitaneado por um diretor que por sua vez tinha um vice-diretor, no primeiro escalão. E qual uma agência bancária, ali cada um tinha suas atribuições. Chegava, pegava no batente e punha a roda pra girar. Horários de serviço, rigorosamente controlados ao cartão de ponto. Encerrados os dois expedientes regulares, ninguém poderia permanecer na repartição após tais horários, salvo exceções devidamente programadas e expressamente autorizada pelo chefe imediato, visado pelo diretor. Caso contrário, estaria sujeito aos rigores da enciclopédia americana. Os veículos, todos, tinham uma tarja:  “Serviço Público Federal – Uso exclusivo em serviço”. E eram  todos controlados, em formulário próprio, nos percursos que realizavam, com anotações de horário de partida, horário de chegada e quilometragens respectivas, embora que, na prática, aquilo de nada servia.
Ao final do mês e mediante relatórios das atividades,  a cada veículo era feito o controle da quilometragem, do combustível etc. etc. O serviços da garagem também submetiam-se a relatórios mensais, ali apontando-se todos os serviços executados e até mesmo a feitura de simples “arruelas”, executadas pelo torneiro mecânico. Rigoroso também era o controle de combustível, peças automotivas, pneus novos e usados, bem como um serviço de “cemitério” para peças descartadas e inservíveis, dos veículos. Tudo isso, de acordo com a enciclopédia do modelo americano.
O diretor era um linha-dura jamais comparado com qualquer outro sobre a face do chão.  Exemplar, modesto, honesto.  Uma linha  reta em todos os passos da sua vida. E,  notório, como marido, não olhava sequer para o  lado. Retilíneo, tanto na vertical quando na horizontal. E nisso a galera tinha a obrigação de se espelhar. Naquela repartição, em tantos anos e mais anos daquele diretor, jamais se ouviu falar em corrupção, desmando, desvio ou falcatrua para com o erário. JAMAIS! Os servidores tinham todos os seus direitos assegurados e apontados em carteira; tudo rigorosamente correto, centavo por centavo. Sem uma única queixa. E quando ali, nas prestações de conta, passou-se a falar em “arredondamento de centavos”, até pareceu que uma banda do mundo caiu sobre aquela repartição – tais os critérios rigorosíssimos nas prestações de contas, até com os centavos!
Muita regra, muita disciplina, muito regulamento, deixa, porém, que aquele universo fechado, retrancado, linha dura era feito de seres humanos, sujeitos a vícios, erros, faltas e pecados, além da promiscuidade e das culpas inerentes a espécie “bípede”, que viceja, maneja e mercadeja a vida sobre a face do chão. Era aí onde aquela enciclopédia de regras, modelo, formulários e rigores, tantas vezes ia de água abaixo ou jogada pelo esgoto, tal como hoje se desenha e se “ilustra” nos esgotos da Lavajato!!!
Seu  QL cursava faculdade, precisava sair antes do final do expediente. Com a conivência do seu chefe, um outro servidor batia-lhe o ponto. Aquilo era “o crime da mala”! Se chegasse aos ouvidos do diretor, era RUA para todos os três. NM era poeta, cronista do além. Fazia parte da intelectualidade do reino.  Entrava calado e saída mudo. E não dava bola pra ninguém. DL tinha fama de um doido discreto. Serviu na 2ª. Guerra Mundial. Certo dia, com os dois braços simulou uma metralhadora e mostrava como dava tiros, na guerra: Ta-tá-ta-tá-ta-tá-ta-tá. Nessa giratória, quando deu por conta, estava em cima do diretor. O homem virou uma estátua de sal, com as mãos esticadas. O diretor sorriu levemente e, como era fechado, esse sorriso entrou na história da repartição. CCC era um cearense e motorista. Diziam que ele fazia mudanças nos retornos  no carro da repartição, onde carregava cachorros e papagaios. Era outro “crime da mala”!
WDL era motorista. Ou era doido ou fazia questão de ser doido. Dizia aos gritos que corrompeu o seu esculápio por um atestado, agraciando-lhe com um casal de “arara azul” e outros mimos que levara depois. Falava isso aos gritos, gesticulava e não estava nem aí pra ninguém. RB. trabalhava na compra de materiais. Era um espécie de “rei do trambique”. GBL era engenheiro, boa praça e boa pinta. Tomava suas pingas e... comia todas. RYL era mecânico auxiliar. Era unanimidade na estima de todos. Na garagem todos sabiam que ele tinha fobia a cobra. Um dia, colegas entregaram-lhe um cofo, dizendo que era peixe. Quando RYL foi ver era uma cobra.  O rapaz teve um desmaio e foi embora.  Queria abandonar o emprego. Obtiveram-lhe um atestado. E de atestado em atestado, pediu transferência e nunca mais voltou àquele convívio funcional.
RRR entrou na repartição pelas mãos do diretor, a pedido de sua mãe que era lavadeira da esposa do chefão. O rapaz, bem empregado, chefe de um braço da repartição, no interior, quando voltava à matriz, tinha a postura de um “golden boy”. E até  parece que vivia nas estrelas e não pisava ao chão e não sentava no vaso. Nessa pose, ele, confiante, foi ao diretor: “Sabe doutor, minha mulher ganhou criança eu estava apertado e peguei o dinheiro da repartição que vou repor em seguida: O quê???? Na mesma hora o diretor suspendeu o rapaz. constituiu uma comissão de sindicância que despachou para o local e em 72 horas dispensou o seu “protegido”, por JUSTA CAUSA.
MESTRECÊ – Era mecânico e, na discrição, gostava de umas pingas. Chegou pra botar ordem no “galinheiro”. A turma que nos finais de semana, comia uma galinhada e tomava umas pingas, carregou o MESTRECÊ, que acabou aderindo à “matalotagem da curriola”. Acabou voltando à sua base. E assim aquele modelo de repartição e de burocracia e de regras e de enciclopédia e de cristãos com seus erros e pecados viveu os seus dias, até finalmente, ser absorvido por outro órgão e, neste último, ali sim, ninguém era de ninguém. Tudo era igual a nada. Os servidores de outrora sofreram e amargaram com a fusão. E foi-se pelos ares aquele “MODELO” de repartição que era! Quer dizer: “era e não era”. E tudo virou uma tapera! Era o que não esperava aquela galera! E quando os órgãos se juntaram, a  turma virou uma fera!!!