A SAGA DO MEU VELHO PAI
(e a escolaridade dos filhos)
Ainda nos tempos de capina e coivara e sol a sol, eu ouvia as declarações do meu pai: “quando me casei só tinha o dia, a noite e o caminho para andar”. Numa dessas meu pai mostrava suas vantagens na vida. Agora tinha um cavalo de cangalha, um burrico, um arreio de sela; uma casa de taipa e palha, uma posse de terras; tinha uma pistola (mauser) enferrujada que era o seu enfeite principal, tinha um luzidio dente de ouro, um charme e tanto! Sentia-se de bem com a vida. E repetia: “quando me casei tinha o dia, a noite e o caminho para andar”. E eu lá, ouvindo a história, trabalhando no eito e sorvendo e a vitória!
Naquele meu chão de capoeiras, os pais criavam os seus filhos e punham-nos na roça bruta, no sol a sol. Por vezes, uma escolinha brejeira para “aprender a ler e assinar o nome”, tudo lá no mato mesmo, até o segundo livro, o terceiro livro, só isso e mais nada. Já sabe ler, escrever e fazer conta, basta! Filho de pobre não pode ser doutor. Então pra que estudar? Era a lei do que diziam por ali. O meu pai, porém, tinha um sentimento e um olhar noutra direção. Único por ali, salvo os senhores de engenho, tinha planos de escolaridade para seus filhos - mesmo que sem as mínimas condições. E nisso o meu velho era considerado um “louco”. E enquanto todos enfiavam seus filhos no sol a sol do roçado, o meu pai seguia noutra direção.
Eu deveria ter sete anos quando numa certa manhã, domingo de verão, surgem cavaleiros bem vestidos e arreados, fazendo “turismo”, moradores da VILA vagueando por aquele meio de mundo. E meu pai do portal de sua casa, tão logo eles irrompem na passagem no terreiro, dá o grito, eu me lembro bem: “Hei senhores todos, vamos encostar, apear e abancar”. Foi o que aconteceu! E os cavaleiros no trote, encostaram apearam e abancaram. Eu, por ali pensava feliz da vida, naquela “carne de porco com arroz” que a minha mãe preparava.
O meu pai bom de prosa e a conversa foi-se esticando e o dia passando. A certa altura, o anfitrião, meu pai, faz uma patética declaração: eu tenho um filho que vocês precisam ver! Tá na escola, faz contas, sabe ler e escrever e conhece a tabuada. Quelé, vem cá! Olha eu! De repente vi-me rodeado dos quatro num pipoco de perguntas que estouravam de todos os lados: história, quatro operações, tabuada, leitura. Os caras endoidaram! Em seguida comeram o nosso almoço e... todos ficamos sem a “boia”, naquele dia.
À despedida, um deles, referindo-se a mim, sugeriu: “aproveita essa cabeça”. E o meu pai em lamúrias: mas eu não tenho uma casa para ele ficar. Foi aquela “saia justa” entre os cavaleiros, já em montaria e ali, num instante, combinou-se que eu iria morar (para estudar), na casa de um deles, na Vila. Era o Sr. OSMARINHO, um pequeno negociante de prateleiras esvaziadas. Ao iniciar o ano letivo, montei com o meu pai no mesmo cavalo e lá se vamos os dois rumo à VILA, em quase meio dia de viagem. À tarde fui à sabatina da Professora NÉGILE ATTA, diretora do Grupo Escolar Mota Júnior. Um vulcão de perguntas, cópia, ditado, contas e prova oral. Vi que a mestra gostou! Eu havia concluído o “terceiro livro” na escola de palmatória e chão batido lá do mato mas a professora, por eu não ter “currículo oficial”, sugeriu que eu ficasse no 2º ano. E meu pai disse AMÉM!!! SIM SENHORA!!!
Seis meses depois, a família da minha hospedagem estava de volta para o Rio de Janeiro, queria me levar. Meu pai disse NÃO. Novamente o meu pai no “ora-e-veja”, sem achar lugar para mim. Tenta um, tenta outro e nada. E eu na iminência de voltar para o roçado. Até que alguém sugeriu justo a casa daquela diretora NÉGILE ATTA, do Grupo Escolar. Fomos lá e... deu certo. No dia seguinte, naquela tarde ensolarada, mudei de mala e cuia para lá.
O meu pai tinha um verbo só: “bota pra estudar, bota pra trabalhar, escreveu não leu, mete a taca. E quando eu chegar, aí é que vai ser bonito!”. Pronto! E lá estou eu, nesse quotidiano de guerra, naquele casario de “carcamanos” celibatários, em que se conjugavam trabalho/respeito/escola/honestidade/obediência em primeiro lugar - sem saber que inauguraria uma nova dimensão na vida de todos nós. Morei por quatro anos nessa casa; creio que dei boas contas. E abri portas para que tantos outros meus irmãos passassem por lá sempre com o mesmo refrão: “bota pra estudar, bota pra trabalhar, escreveu não leu, mete a taca. E quando eu chegar, aí é que vai ser bonito!”.
E o meu pai, mesmo ressentindo-se em sua roça vazia e sem os filhos, ESPALHAVA suas crias pelas casas alheias, à ânsia de suas escolaridades e zé-povinho ali na beira dizendo: “Antônio de Inez é um doido – bota filho pra aprender”. Aprender pra quê? Filho de pobre não dá em nada, nunca vai ser doutor, nunca vai ser nada. O meu pai não deixava de graça, contra-atacava e justificava. E continuava ESPALHANDO os seus filhos pelas casas alheias com o mesmo refrão de sempre: bota pra estudar, bota pra trabalhar, escreveu não leu, mete a taca. E quando eu chegar, aí é que vai ser bonito!”.
E assim estamos todos nós, DEZ ao todo, cada qual para o seu canto e todos fazendo das suas. E a senhora minha mãe que jamais teve semelhante oportunidade, contudo orgulha-lhe dos filhos: “meus filhos aprenderam, nunca roubaram, nunca mataram, nunca foram presos”. E bem ali eu lembro, aquele meu velho pai, farejador do futuro, de roças vazias e com os filhos ESPALHADOS nas casas alheias, zombado até na busca ao voo de suas crias: “Bota pra estudar, bota pra trabalhar, escreveu não leu, mete e a taca. E quando eu chegar, aí é que vai ser bonito!”
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Este tema eu mando para “os caçoístas” de um tempo... que voluntariamente zombaram e, involuntariamente, deram forças ao meu velho pai. Mando para uns tantos que me encontram por aqui e dizem que os CAMINHOS POR ONDE ANDEI tem muito a ver com os CAMINHOS por onde eles igualmente trilharam.
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