"Felipe vira bucho"

O professor AG era, ao seu tempo, indo e voltando, a maior autoridade em DESENHO TÉCNICO, sua cátedra e especialidade. Imagine-se um quadro com cinco metros de comprimento por um metro e meio de largura, e aquela fera enchia aquilo tudo  em desenho técnico com linhas cheias e pontilhadas,  vista frontal, vista lateral, perspectiva cavaleira,  eixo cartesiano - sombras e tudo o mais. Dava um banho e dava um baile. Líder no seu ofício.
 AG "tirava sarro" com um e outro, puxava lero e dizia "jacaré te nhanha". Era uma senha que, ainda  que na brincadeira, era contudo a realidade da fera! AG tinha fama de reprovar por um décimo de ponto. O aluno ficava reprovado ou  pendurado o ano inteiro na sua matéria; mudava de escola, desertava. E ele lá, volta e meia, só advertindo: "jacaré te nhanha".
AG, bom de prosa, contava nas intercaladas das aulas as experiências em suas provas. A guerrilha que havia na hora da "cola" e o combate férreo que enfrentava dando zero ao candidato por qualquer trastejo; qualquer tentativa de cola. Narrava em detalhes a destruição que praticava; os "zeros"; as reprovações. E a turma tremia na base. E ninguém não ousava nem olhar para o lado e a qualquer deslize nas provas da fera, porque, como sempre, o desfecho era fatal. Não havia perdão. Um verdadeiro  campo de guerra com as vítimas entregues ao horror, ao holocausto. E o professor AG reinava impávido, independente, intocável - respeitado e temido na presença e na ausência.
Naquele universo daquela Escola, todo o mundo (todo o mundo) tinha lá o seu apelido. Não havia uma viva alma que escapasse aos codinomes, impublicáveis, até. Professores, diretores, alunos funcionários - apelido fazia parte da cultura daquela gente. O Professor AG, como sempre, estava invicto. Certo dia, na turma, sem mais nem menos,  AG  resolveu provocar. Contou que, quando estudante, de férias em sua terra-natal, resolveu tirar uma de bonito e vestiu o fardão (a farda) da sua  escola. Algo parecido digamos com uma farda militar, como, aliás, eram os colégios públicos daquele seu tempo. Moleque, vestido naquele fardão, deu uma volta pelas ruas e quando voltou para casa trazia consigo um apelido: FELIPE VIRA BUCHO. O apelido tinha a ver com um personagem, um descamisado das ruas que vestia semelhante fardão e daí o apelido - FELIPE VIRA BUCHO.
Eu, na turma e na minha, um eterno fracasso em desenho técnico, logo imaginei: "Esse daqui por diante será o nosso eterno FELIPE VIRA BUCHIO". E o mestre desataca-se naqueles desenhos complicados e, no desafio; repetia desenhando e emoldurando o seu próprio personagem que inspirou o povo ao apelido que levara lá pelo mercado - FELIPE VIRA BUCHO. Aí eu fiquei na minha, só para ver no que dava, par ver a "curriola" arregaçar com o "Felipe Vira Bucho" e, finalmente, onde iria parar aquele apelido que seria impingido àquele monstro em desenho técnico, de uma soberania sem precedentes.
E quem foi que disse que um único cristão, uma única viva alma sequer, teve a coragem de pelo menos pronunciar aquele apelido ainda que longe do mestre em milhares de anos luz? Quem disse? Ninguém... absolutamente ninguém... E assim o mestre AG reinou sozinho impávido, altaneiro, independente, intocável a vida inteira...
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Embora aquela  Escola  tenha sido para mim uma grande mãe e madrinha na minha vida, uma gratidão que até hoje reverencio, eu, porém, não tive pendores para o "curso técnico", tanto que vivia pendurado em desenho  técnico e em matemática e  até hoje não sei fazer um linha reta com o auxílio de uma régua, ainda que digam que "a linha reta é a menor distância entre dois pontos" (risos)...
Nessa sina, vivia de "segunda época", dependente de uma prova de repescagem. E, por vezes passava de ano, devendo a matéria do ano anterior. Um sofrimento! Uma tortura! E a desmoralização?! Quando concluí a 4ª série ginasial, fiquei pendente um ano inteiro tão só em desenho técnico com o Professor AG. Tinha que tirar NOVE (redondamente nove), sem faltar um décimo sequer, para poder passar de ano. AG era um carrasco em pessoa. Em toda a minha vida nunca tinha conseguido tirar sequer um sete em desenho. Como obter nota NOVE, àquela altura. Nem em sonho!
Estudava naquela turma (a que fiquei pendente) um amigo e "irmão de criação", o DJP, respeitado como "BURRÃO", porque numa eventual briga, era um destruidor do adversário.  Embora  pacato, mas não levava desaforo pra casa. Então todos o respeitavam  e, no conjunto, tinham-lhe estima. Sabe aquele herói em que ninguém mexe? Pois é...
Burrão, meu irmão de criação, falou com o JBT, um craque em desenho técnico, um segundo AGS,  para que fizesse a minha prova. Olha o risco! Sentamo-nos ao lado, e, num piscar de olhos trocamos os papéis, eu  "fazendo a prova dele", ele fazendo a minha. Imaginem o estrago! Quando o professor AG anunciou NOTA OITO para mim, saí desesperado. Estava reprovado! Burrão então foi fazer um lobby único em toda a história e vida do professor AG. E explicou-lhe que eu precisava de NOVE. A essa altura eu, no desespero, estava a dois quilômetros dali, infeliz, sozinho e chorando pela rua. Reprovado! E com a minha vida (como sempre), nas mãos de Deus.
Quando dei por mim, Burrão chega correndo: "Volta que o professor AG resolveu reconsiderar tua nota e te deu NOVE". Voltei e mestre AG fez um discurso de elogio e "reconhecimento" pela minha "brilhante" prova. Até hoje eu não consigo me perdoar por tudo isso. Data cinquenta e dois desse episódio  e lembro do fato como um rio que passou em minha vida. Professor AG, que Deus o tenha no Reino da Glória. Amém!!!