... DA MÁQUINA DE ESCREVER, ATÉ AQUI
(segunda edição)
O meu pai (em memória) é o meu ídolo e herói. Dele sou fruto e a ele devo uma banda do meu ser. O meu pai “estudou”, tão somente, até a “cartilha”, um livreto de oito ou dez folhas, do tempo do soletrar - mas ainda assim era um verbo solto, uma polêmica eloquente, um advogado nato. Bom de prosa e chegado num rabo de saia. E por último um poeta de cordel. Órfão de pai aos cinco anos, criado pela avó, ao lado da mãe, “moradeira” em terra alheia. E olhe a canga! Venho dessa origem e me convenço de “cada qual para o que nasce, cada qual para o que nasceu”.
Naquele meu chão feito de roceiros, enquanto todos punham os filhos na peleja do sol a sol, na roça, tão logo que “me entendi como gente” vi o meu pai preocupado com a escolaridade dos filhos. Não podia mas tinha vontade, até porque a “Vila”, da escola pública fica/va distante. Com viagem numa estradinha igualmente penosa no inverso e sofrível no verão, em cavalo de cangalha – um dia inteiro em ida e volta. Um dia de luta e fadiga. Um dia, porém, pelos vieses estreitos e sinuosos da vida – quando “Deus escrevia certo por linhas tortas” na minha vida acabei indo morar na casa de uma família abastada na “Vila”. E, nessa “casa alheia”, acabei por abrir caminho para vários outros irmãos meus.
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Quando concluí o curso primário, o meu pai fez o que nenhum ou poucos pais fizeram: levou-me direcionado para o exame de admissão na Escola Técnica Federal, em São Luís, que ele dizia “Escola Técna”. Dei sorte e no início do ano eu estava matriculado! Certo dia, porém, meu pai matriculou-me na Escola de Dactilografia São José de Ribamar, do Professor Carlos Galvão, perto dos socavões da Rua da Malária, onde eu morava. A ideia do meu pai, dessa datilografia, veio de uma máquina-de-escrever que ele viu admirado na Agência dos Correios, cujo chefe o esnobou, e “fez pouco caso” à sua admiração pela pérola.
O curso de datilografia ao que sempre avaliei, afora a dedicação, seriedade e empenho do PROFESSOR CARLOS, era de uma precariedade lamentável! Tinha quatro máquinas de escrever. Três delas em estado precário e uma quarta envelhecida que era o amuleto do mestre, seu objeto de estima. E só era cedida aos alunos em casos raros ou em época de “exame de habilitação”. O curso tinha programação para seis meses, mas com três meses eu já estava dando conta do recado. Uma diplomação com direito a convidados, madrinha, discursos, retratos, bolinhos e guaraná, num tarde memorável. Recebi o diploma, nele pregou-se o meu retrato e o meu pai guardou-o acostado na parede por muitos anos.
Com a diplomação, tornei-me “viciado” em máquina de escrever. Como não dispunha de uma máquina, o que eu fazia? Nas noites acordadas, na sofreguidão e ansiedade pela datilografia, eu usava um teclado imaginário na mente – a s d f – ç l k j - q w e r – p o i u. E assim na pura mente eu ia treinando, escrevendo, fazendo cartas. Que fazer carta é um velho ofício meu. “Errava”, “corrigia”, usava o “teclado do tabulador”, a “tecla de retrocesso”, a maçaneta do espaçador horizontal, a linhagem vertical; tirava papel, punha papel – Era como eu fazia exercícios de dactilografia - tudo na pura mente, no imaginário. E lá vou eu “treinando datilografia”. Numa tábua improvisada!
E não resistia em ouvir a sinfonia em tic-tac de uma máquina de escrever, aquele toque cadenciado e bonito aos meus ouvidos. E então, por vezes, onde eu chegava e sempre que viável, passei a pedir que me cedessem a máquina. Dizia que queria fazer uma carta para minha mãe. As pessoas ficavam sensibilizadas como o nome de “mãe”. Fazia cartas de verdade e, “dando uma chave”, pedia que o/a cedente lesse a minha carta. Notava que as pessoas gostavam do meu desempenho e do texto. E assim fui tocando o exercício em datilografia. No grito!
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Quando concluí a 4ª. série ginasial, numa manhã de férias, na roça, o meu pai cravou o machado ao toco e decretou: “ou tu arranjas um emprego na cidade ou (mostrando-me o esticadão de suas terras), o mato está aí pra fazer roça”. Senti que me faltou terra ao chão e tive a sensação de que estava num barco perdido no meio do oceano. E agora? Ao final das férias voltei para a capital. Numa tarde de fim de ano, céu nevoento, brisa leve, minha Escola Técnica de tantas multidões, agora estava de recesso, sem ninguém. Quase não tinha um viva alma. O PROFESSOR RONALD CARVALHO, então vice-diretor e linha de frente em tudo, estava ali. Recostei-me a porta da sala e, emudecido, fiquei a vê-lo em serviço. A certa altura, porém, do meu desespero, abrir o verbo: “professor, me arranje um emprego”. - Fiz o teste em datilografia e ganhei o PRIMEIRO EMPREGO.
Dali em diante a máquina de escrever me abria portas sobre portas em vários outros concursos, em bancos e num segundo emprego público a que fui admitido por concurso público. E daí o passaporte para a Faculdade que me trouxe e me traz até aqui. A máquina de escrever foi, enfim, uma ferramenta e praia das minhas vitórias, máquinas essas, similares, adquiridas depois e que guardo empoeiradas e sinto-me agora na tentação de delas me desfazer. Uma dor! Acho que é daí que hoje acumulo uma SÍNDROME DO CARPO (fraqueza nas duas mãos), mas contra a máquina de escrever, a minha voz não se levanta, nem se levantará. Afinal foi a máquina de escrever que me abriu portas; que ajudou a realizar o velho ideal do PRIMEIRO EMPREGO e que até hoje é um vetor na continuação do teclado do computador e do meu exercício profissional. E, em tudo isso, os sonhos, a visão e a obstinação do meu pranteado, visionário e velho pai. E a tudo dou GRAÇAS A DEUS!.
Edição Nº 15904
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