CASA DO ESTUDANTE-II
Carrego comigo a grata experiência de ter vivido num internato por quatro anos, bem como a oportunidade de ter morado em duas casas de estudante. A primeira em nível secundário, onde fiquei por quatro anos; a segunda em nível universitário, também por quatro anos. Ainda a considerar um bom tempo nos antigos “pensionatos” e outros tantos em “comensal” de restaurantes coletivos. Quinze anos no “currículo” em diferentes moradias, não é coisa para qualquer um. Eu, no entanto, declaro-me grato por essas promissoras passagens. Mas o que quero falar aqui é da CASA DO ESTUDANTE SECUNDARISTA DO MARANHÃO (CESM), onde só vivi, plantei e colhi.
Cheguei à CASA DO ESTUDANATE num começo de tarde e, minutos depois, estava cara a cara com o presidente da UMES – entidade que então administrava a Casa do Estudante. Ambas que sediavam-se no mesmo prédio. Na época, havia uma “moda jovem” em que as golas das camisas eram levantadas na parte posterior, o que despertava um certo preconceito do social, algo como coisa de “malandro”. Levei logo uma “catracada” por isso. E, ao fazer a minha ficha de ingresso, disse que o meu pai era “agricultor”. Sabatinado, ficou definido que ele era mesmo era “lavrador”.  Considero  que fiquei mal na foto de ingresso.
Admitido na CASA DO ESTUDANTE, fui morar “lá embaixo”, num quarto coletivo chamado “GERAL”, que acomodava uma dúzia; destino, aliás, de todos os novatos. Na parte superior, dotada de banheiro e vários quartos que abrigavam meia dúzia – era como se “lá em cima” fosse a ala dos privilegiados e “lá embaixo” a escória, de cara para o sol. Nisso o pessoal lá de cima “tirava sarro”, “zombava” e a palavra “GERAL” era como se fosse aquela ”casinha” que fica lá... no fundo do quintal. Mas tudo brincadeira, gozação, sacanagem, até porque todos ali, de regra, passaram pela GERAL.
De minha parte, assim como todos ali, embora sofrêssemos dificuldades financeiras, ÉRAMOS FELIZES. Não havia queixa nem reclamação, nem lamúrias. Ainda que quarto coletivo de porta e janela apenas “encostadas” ao ermo da noite, ali não se registrava nada de suspeito. Nem pequenos furtos, nem uso indevido de coisa alheia,  nem desvio de conduta. Finalmente, cada qual por si, na luta pela escolaridade e, obviamente, pela sobrevivência. Uns tantos cursavam durante o dia; grande maior parte à noite; todos na escola pública; só alguns empregados, grande maioria esperando uma ajuda de casa. De tempo em tempo, quando havia i um baile, no grande salão-social”, era uma festa e tanta!
Das muitas cenas que guardo das lembranças da CASA DO ESTUDANTE, era quando a gente ali ao terraço, frente para a rua, luzes acesas, dez, dez e meia da noite e todo o mundo chegando ali, vindo de suas escolas. Tamanhos machos, até. Aquele horário de chegada, aquela chegada em grupos, seis, oito, dez estudantes, me dava a ideia do compromisso, da responsabilidade, da disciplina, da visão de futuro e de todo um ordenamento natural de como se comportava aquela turma colegial.
Havia no meio uma regra ética natural em que um morador tinha acesso apenas ao seu quarto e às dependências coletivas da casa. Não que fosse proibido acessar aos aposentos alheios, fosse por amizade ou conveniência, mas, de regra, ninguém vivia trançando pernas pelos aposentos dos outros. E reinava na casa a mais perfeita harmonia, o sossego, o equilíbrio, a paz social e a convivência cordial. E... cada um por si e “Deus por todos nós”. 
Durante quatro anos ali, jamais ouvi dizer que foi furtado ou “desapareceu” um objeto qualquer de algum dos moradores. Também nunca se ouviu falar em droga, nem mesmo o uso de cigarro convencional, não me lembro. Outra coisa ali presente era manter a discrição, a concórdia e um convívio saudável para não causar incômodos à vizinhança. E a ninguém era dado circular à parte externa da casa, SEM CAMISA. E em eventuais visitas de alguma namorada a algum morador da casa, a visita feminina, ao máximo, poderia permanecer em um pátio com vista livre para duas ruas ali existentes, de vez que A CASA  fica numa esquina. E, não mais.
O que também muito e me impressionou na CASA DO ESTUDANTE era a independência com que vivíamos ali. Ninguém controlava ninguém. Se alguém eventualmente dormia fora ou chegava na madrugada ou no dia seguinte ou três, quatro dias ou uma semana depois, ninguém lhe perguntava por onde andou, o que fez ou por que não chegou. E, apesar de toda essa franca liberalidade, ninguém se excedia ou abusava do direito de ir e vir, sendo que a regra geral era: da casa para a escola, da escola para casa ou rumo ao trabalho e vice-versa.
Na casa, na parte superior, havia um quarto de veteranos, denominado de POTE, espécie de “cúpula” de faz de conta. Mas era como se fossem os “oficiais” em meio aos demais. Por vezes, em final de semana, uns quatro ali se juntavam e bebericavam suas pingas. Por vezes falavam alto e, como sempre, tiravam brincadeiras com a turma da GERAL. Mas ninguém levava a sério, nem eles mesmos. Tudo troça e mais nada.
No segundo ano, quando os quartos “lá de cima” desocuparam, eu fiquei dividido se “subia” ou se permanecia na GERAL. Acabei indo morar ”lá em cima” mas por algum tempo o coração ficou na GERAL. No novo quarto éramos uns seis, tudo tranquilo e tudo calmo, sem uma única reclamação de quem quer que seja. E para ingresso neste ou naquele quarto, bastava haver a vaga. Não havia seleção, nem barreira, nem cara virada. E quando chegava os finais de semana, parte da turma ia para festas, cinemas, bailes populares – cada um na sua – mas ainda assim não se fechavam portas, nem se trancavam malas, não se escondia nada. E ENTÃO ÉRAMOS FELIZES E NÃO SABÍAMOS.
Adonias, um colega que tornou-se um executivo da PETROBRÁS, um dia, assim do nada, resolveu vistoriar uma grande cisterna de vinte mil litros d’água com uma única entrada e saída de 60 cm x 60 cm. Vitor, que tornou-se Oficial PM, teve o cuidado de amarrá-lo pela perna, visando segurança. Não fosse o cuidado de Vítor, Adonias já era! Duro para mim foi aquele sábado, começo do ano, manhã de sol, quando tive que deixar a CASA DO ETUDANTE. Foi quando senti que bem ali foi “o dia em que faltou terra ao chão”, um tema que já reescrevi por umas tantas vezes.
Anos tantos se passavam e de tempos em tempos eu, saudoso, voltava em visita à Casa do Estudante. Em duas ocasiões apresentei-me como ex-morador, contei estórias e fiquei hospedado. Por último, faz anos, voltei por lá. Vi que namoradas ou “paqueras” dos moradores frequentavam a casa, visitavam seus quartos e havia até o caso de um morador que se encontrava doente e que a namorada teve “permissão” para  acompanhá-lo.  Senti-me  decepcionado e envergonhado. Vi então que as velhas regras éticas, nesse ponto foram quebras. Não gostei. E nunca mais voltei à CASA DO ESTUDANTE, aquele meu velho berço, de GERAL e de “lá em cima”, num tempo que me ensinou uma dura lição que foi quando tive que sair da casa. Enfim, O DIA EM QUE ME FALTOU TERRA AO CHÃO.