JEREBA
(um sábio que viveu no deserto)
Tocado pelos ventos do destino, tornei-me um morador perdido nos meus próprios horizontes, daquela cidade na Baixada, quando tinha então 27 anos, um anel de rubi ao dedo e um diploma de bacharel em direito. Corria o início dos anos setenta. Foi quando conheci um negro de cabelos carapinha e esbranquiçados, corpulento, falaz, eloquente, que se chamava JEREBA. De início logo me despertou o seu codinome: JEREBA, que naquelas bandas é uma conhecida espécie de urubu. Urubu jereba.
Certa feita, nos acasos da vida, cruzei com JEREBA, com ele num hiato, entre uma pinga e outra. Uma prosa saborosa! Um argumento! Uma gramática! Uma articulação! Um verbo fluente! Uma cultura geral! Um sábio! Fiquei impressionado com o cara! E a conversa varou o tempo. Eu que tinha lido, ainda no curso primário, sobre a fábula de um sábio que vivia no deserto, a partir daí passei a ter a incontida fixação e desejo de conhecer um sábio pessoalmente. Vi então, no meu insano subjetivo, que estava diante de um sábio!
Em meio a um milhão de perguntas, todas que satisfatoriamente me respondeu, quis saber onde JEREBA - aquele sábio - morava. Ele então, saindo para a rua, apontou-me, para o meio do campo, onde pude ver, na distância, um minúsculo e solitário casebre de palha, no meio do tempo. Era lá a sua morada. Como profissão me disse que era... “marceneiro”.
Manifestei, então, o desejo de conhecer pessoalmente a sua casa. Mostrou-se assim um tanto acanhado, mas não se fez de rogado. E lá vamos nós, por aquela “puída” (que são pegadas de um caminho), feito sobre a terra do campo. E lá vamos nós em chão esticado, até chegar lá. Pobre JEREBA! morava no meio do campo, uma terra de ninguém. Na sua casa, sem cerca, sem quintal, sem um galho de sombra e como do ditério: “não tinha nem lá dentro nem lá fora”. Não tinha nada, senão modestas e improvisadas paredes de pindoba, o teto de pindoba e, certamente, uma rede para agasalhar-se ao abandono solitário da noite. Quiçá um improvisado banco para sentar. Não me lembro.
Também, não tinha mulher, nem “bichos de criação”. E as suas ferramentas de trabalho em “marcenaria”, tudo o que vi foi uma velha enxó e um pequeno martelo com o cabo “mal-ajeitado”. E um mísero fogão de trempe com três minúsculas pedras de barro. Doeu-me na alma e no coração ver aquele sábio, no meio do deserto, sem eira e sem beira, sozinho e sem ninguém por perto. E fiquei a imaginar sobre a miséria a que aquele cristão se submetia. A precisão, a necessidade. A fome. Porque na sua casa, não se via nada, nada, nada.
No papo-vai, papo-vem, ainda no hiato entre uma pinga e outra, na cidade, me disse com verbo solto e com uma ponta de orgulho e ufanismo que “carreguei SARNEY escanchado no ombro”. Sarnei, a esse tempo da conversa, havia sido Governador do Maranhão e então Senador da República e, como sempre, manda-chuva por seu Estado. Quis então saber de detalhes, da saga, do batidão, da peleja.
Contou-me o velho JEREBA que o pai de Sarney, o velho SARNEY COSTA, então Promotor de Justiça, movimentava-se entre as Comarcas de São Bento e Pinheiro, passando por Palmeiras que depois, adquiriu independência com o nome de PALMEIRÂNDIA. Àquele tempo, aquele pedaço de Baixada, era servido por precárias estradinhas de transporte animal, que viravam lama durante o inverno e tornavam-se inviáveis, de tal sorte que a opção do transporte, no inverno ou era por canoa tocada a vara (quando o inverno em alta), ou simplesmente a pé, vencendo o barro do campo, que por vezes, afundava até à altura do joelho. Era um pesadelo!
Foi nessa via-crucis que o então ainda hígido e forte JEREBA, conduzia aquele menino, escanchado ao ombro, atravessando os campos, em léguas de caminho, em companhia do velho pai, ora rumo a São Bento onde tinha morada, ora rumo a Pinheiro, onde o pai exercia o seu ofício. E JEREBA contava sobre essa passagem e experiência, flanando, feliz e vitorioso, em gestos largos e fala solta, ao lembrar essas e outras travessias da vida!
Enquanto isso eu ouvia aquele sábio, loquaz, inteligente, articulado. Uma gramática em puro verbo! Conhecimentos gerais ali, derramando pelo chão! Mas doeu-me no coração e na alma ao visitar aquela casa de chão frio, rente com o chão do campo, sem um batente sequer, tão somente da altura do seu dono, sem eira nem beira, sem lá dentro e sem lá fora, sem um único cachorro, sem mulher de companhia e sem um único bicho de criação para desaperto nas horas de fome, que são tantas.
Vi então que qual naquele livro do primário, “MEU TESOURO” - na fábula do sábio que morava no deserto, ali estava aquele JEREBA, um sábio, que ufanava-se em ter servido ao seu amo, Sarney menino, então infante e inocente e agora, tantos anos depois, o senhor dos anéis e das estrelas - qual um pássaro com voos rasantes em que o seu Estado tornara-se pequeno, agora em busca de novos horizontes neste país continental. Jereba, certamente, recebera o seu salário por tais serviços, mas que, nas voltas que o mundo dá, agora, quer dizer àquele momento, vivia no deserto, sozinho, sem ninguém, sem um pinto pra comer ou pra dar de comer e sem nada porém na fartura do abandono, da miséria e da fome.
Os ventos que me tocaram àquele chão da Baixada foram os mesmos que me sopraram para estas barrancas tocantinas. E nunca mais tive notícia daquele velho JEREBA; aquele sábio incrível, verbo fácil e solto, gramática viva, cachola acima da média, abandonado em si mesmo que um dia serviu ao seu amo, Sarney menino, e que, pelo enredo desse drama, morreu na penúria. Esse mesmo enredo que costuma nos mostrar uma crua realidade: é que a miséria costuma ser a ponte de passagem e o fim da linha dos homens sábios que acabam nos desertos de si mesmos ou... nos desertos da vida. Qual um JEREBA da vida.
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