“... COMO SE ESTIVÉSSEMOS NA GUERRA”
Costumo dizer aos meus “colabores” – operários, serviçais e outros que deveremos enfrentar situações como se estivéssemos na guerra: preparados, enfim, para suportar e vencer dificuldades, quebrar barreiras, superar obstáculos. E nesse raciocínio, substituir um cabo de aço por uma corda; um palito de fósforo por uma lâmpada; um cipó por um prego e por aí vai. Deles que não acreditam, mas trabalho o verbo e realizo em concreto. Procuro encontrar uma saída honrosa para situações aparentemente sem solução. Tem dado certo! São exemplos tantos. Situações incríveis, até!
Faz 44 anos. Era dezembro. 1972. A minha turma de direito estava às voltas com a colação de grau mas eu, desarticulado e desnorteado, estava às voltas com o meu primeiro julgamento pelo Tribunal do Júri, na cidade São João Batista, neste Estado. Tanto assim que não colei grau em conjunto; passei em alguma situação por “não ter concluído o curso” e enfrentei uma formalidade difícil para colar grau em solenidade exclusiva e extemporânea no gabinete do então Reitor da Universidade, Cônego Ribamar Carvalho. Foi um exceção sem precedentes, um deus-nos-acuda!
Era domingo cedo da tarde quando saí da cidade de Pinheiro com destino a São João Batista. Estrada de terra, razoável, setenta quilômetros de chão, imaginamos que chegaríamos ainda cedo, antes das cinco da tarde! E lá vou eu e o Zuza, um motorista prático, montados num jipe cara alta que servira na segunda Guerra Mundial, como era da sabença comum. O jipe era um cara simpático, boa aparência, fácil, dócil, disposto e servil. Ex-combatente de um tempo de guerra, era feito de guerra e para a guerra. Aquilo era um arrojado e topa-tudo embora que sofrido pela idade.
E lá vamos nós. Vencido algo como uns quinze quilômetros, a correia de ventoinha quebrou. Com o radiador esquentando, o cara alta ainda mostrava-se disposto ao caminho. Eu, que saí de casa ao 7 anos de idade para morar por casas alheias, no afã da escolaridade; depois no internato, depois em “repúblicas estudantis” e portanto já carregando no sangue o “DNA da guerra”, logo sugeri: vamos procurar uma corda para improvisar a correia de ventoinha. Batemos em um casebre que não tinha nada na frente nem lá fora. Um homem respondeu. Expliquei a situação e pedi uma corda. Não tinha. Sugeri comprar a corda da rede. Nem pensar. Ele orientou que fôssemos a uma cacimba que ali chama-se poço e retirássemos a corda do balde. Quando vi a corda, desanimei. Era uma cordinha, fina, cheia de nós e terra; feita de embira, escorregadia.
Voltamos ao jipe. E agora? Lembrei-me que ali mesmo estava a minha mochila, cujas alças eram um cadarço sintético (tipo punho), grosso. Aí pensei, pronto! Encontramos a saída. Dito e feito! Zuza com um laço e um nó improvisou a correia e o cara alta, segunda guerra mundial, dócil, fácil e servil, mais do que ninguém gostou da brincadeira! E lá vamos nós, devagar com o andor. O jipe agradecia. Era visível a sua satisfação. Chegamos em São Bento, minha terra, por volta da meia noite. A correia rebentou exatamente em cima de um areal, dentro da cidade.
Lembrei-me então que um comerciante de secos e molhados que também vendia peças de veículos, justo ali perto, Sr. LUZAMY, e tocamos pra lá. No percurso, conjecturamos que LUZAMY havia sofrido um assalto, na noite, em atendimento extra e por isso não mais estava atendendo em altas horas. Nada não, estávamos na guerra. Seguimos pra lá. Chamei pelo LUZAMY, identifiquei-me por completo, usei o nome do meu pai e expliquei-lhe o compromisso do júri, na manhã seguinte em São João Batista; Luzamy topou abrir o comércio. E já veio dizendo: “sorte de vocês se tiver a última”. Deu certo! Paguei e agradeci. Em seguida, ZUZA, sem uma única ferramenta, salvo sua boa-vontade e de mãos limpas, colocou a correia no jipe, qual se coloca um laço num animal manso.
O “coroa” amigo e companheiro, segunda guerra mundial, não pegava na chave, só no tranco, no empurrão. Notívagos e tresnoitados de uma festa ali por perto passavam e pedimos ajuda mas todos eles ignoravam. Era por volta de duas da madrugada! E agora? E agora que, estamos na guerra, temos que nos virar. Zuza e eu – só nós dois - empurramos o moleque que descansava sobre o areal. Foi incrível! Em seguida, eu ao volante e ZUZA, num simples empurrão e o cara alta deu o seu grito de guerra: “estou a postos”! E lá vamos nós! Ocorreu que mais uns 8 /10 quilômetros, o radiador começou a ferver, a vazar água e o cara alta começou a esquentar. A situação era extrema. Jipe e noite clara, porém, colaboravam. Era alto verão, até que enfim, numa região que hoje é de assaltos, beira-campo, encontramos uma pequena água barrenta, suja. Um oásis!
Como não sei, pusemos aquele “caldo” no radiador e o jipe agradeceu. E como não havia uma vasilha para conduzirmos a água, embebi as minhas calças e camisa naquele caldo. Vesti um short e lá vamos nós. O jipe seguia sorrindo sem lamuriar e achando graça daquilo. Mais adiante espremi a roupa no radiador e lá vamos nós. O cara alta, segunda guerra, sorria e estimulava na viagem.
Eram sete da manhã, quando finalmente chegamos a São João Batista. Mandei avisar o Juiz sobre a minha presença na cidade que depois lhe contei os percalços da viagem. Fizemos o Júri e o acusado “Agermiro de Bastião”, foi condenado a seis anos de prisão. Durante o julgamento, aconteceram fatos que hoje, 44 anos depois, faço absoluta questão de não tecer qualquer comentário. São as lições da vida, em plena “guerra”.
- E, quanto a “Agermiro de Bastião” que já foi assunto nesta coluna, ele que o encontrei numa festa de arraial, estrela solitária das luzes da ribalta, circundado de outros tantos analfabetos, contanto prosas e loas e outras firulas de sua vida e dos rescaldos vividos na penitenciária, como quem dizia, entre sorridente e matreiro: “EU SOU O CARA”.
Edição Nº 15820
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