ANCORETA

Leia-se “ancureta”. É uma palavra de que tenho notícia, porém não tenho qualquer intimidade. Tenho a concepção de que trata-se de um objeto, um utensílio feito em madeira, borracha ou plástico com a finalidade de estocar líquido/s: água, cachaça, mel, vinho ou coisas assim. Nos caminhões e autocargas do passado, era costume ver-se uma “ancoreta” na parte inferior das carrocerias, adaptada aos movimentos dos veículos e de fácil acesso. Destinava-se ao armazenamento de água potável para o consumo humano. Hoje, ao que percebo, quase não mais se vê  “ancoretas” sob carrocerias de caminhões, ainda que destinadas às antigas finalidades.
Tão somente agora e, a propósito deste texto, vou ao DICIONÁRIO PRIBERAM  na WEB  e este me traça a reposta: “Ancoreta – barril de forma achatada, geralmente para transportar vinho ou aguardente”. Não satisfeito com a resposta, vou ao meu velho DICIONÁRIO CAPA PRETA, que me acompanha fiel e amarelecido desde setembro de 1969 – faz quarenta e sete anos – e lá está: “ancoreta:  pequeno barril chato para o transporte de vinho ou aguardente”.
Qual na canção “Feira de Caruaru”, de Luiz Gonzaga, quando ouvido o Mestre Vitalino a respeito de que outros bonecos e artes em barro não eram de sua lavra mas de outros artesãos, contudo intitulados “... de mestre Vitalino”, responde o mestre: “TEM NADA NÃO..  tudo irimão”. Tem nada não, prosa à parte, voltemos à ancoreta. O chão onde deixei o meu umbigo e que eu amo de todo o coração, e que para lá tenho voltado constantemente ao longo de 7 anos em 42 viagens e onde construo, por todos esses sete anos dentro do mato, homenagens aos meus ancestrais, é um lugar pobre em água. Paupérrimo, no verão!
Lá não existem rios ou fontes ou riachos perenes. A água do uso e consumo de lá vem dos cacimbões que ali se chama poço – que são cavados no braço; que costumavam ficar distante das casas à busca do melhor lugar pra sua localização, mas que, por último, costumam ficar mais próximos das residências. Deles que tem  dez, doze, quinze metros de profundidade e, ainda assim, não tem boa qualidade para a ingestão, obrigando as sofridas mulheres roceiras, outras aposentadas, desdentadas e mais que sexagenárias a caminhar distâncias e a carregar sobre a cabeça o “líquido da vida”. O que, aliás, sempre o fizeram desde a mais tenra idade.
No verão, então, a situação é mais difícil e sofrida. Alguns poços secam e as pessoas ficam obrigadas a buscar água em cacimbas distantes e outras que se localizam em “grotilhões”, com íngremes e arriscados declives/aclives, além do iminente perigo tanto na descida com a vasilha vazia quanto na subida com a vasilha  cheia, ao todo em 12, 15, 18 litros d’água. Enfim, um lamentável sofrimento de que aquela gente se ressente - uns mais e outro menos – durante o período de verão, com a escassez d’água, bem como a pobreza de vasilhames para a condução e estoque. De tal sorte que, ali, um balde de 20 litros ou vasilhame semelhante desses que se compra no Mercadinho ou em qualquer lugar por cinco, sete ou dez reais é um utensílio de primeira necessidade e, se convertido num presente aí sim: “um presente inestimável”.
Consciente desse sofrimento, sempre que vou à minha terra, entre outros, costumo levar vasilhames em plástico que os distribuo gratuitamente: à vizinhança: baldes de tinta  ou de margarina (vazios), tambores de água mineral e outros similares. Vejo então a festa e o brilho nos olhos de quantas se fazem aquinhoadas com a vasilha. Nessa maratona, tenho também os meus depósitos: tambores de  20, 50, 100 e 200 litros, embora que, por último tenho múltiplas caixas d’água e cisterna de acumulação de água da chuva. É como diz o humorista e dublê de cantor Falcão: “o dinheiro não é tudo mas é cem por cento”.
Em tal situação acabei emprestando um tambor de 200 litros a um vizinho-distante quando da construção de sua casa. Terminada a obra ele cedeu-o à sua sogra que com o tambor ficou por algum tempo até que... dele voltei a precisar. Percebi então que a mulher ficou “apaixonada”, quase doente ao ver o tambor escapar de suas mãos. Via fugir de suas posses aquela preciosidade, aquela “ancureta”  como ele mesma dizia. Levei-lhe então em seguida outros baldes menores, mas a “paixão” não se desfez, percebi, tais as perguntas a que e fazia.
Faz poucos dias voltei à minha terra. Parei em frente à dita mulher, agora numa “padaria” de fundo de cozinha que tem lá naquele chão. Outra preciosidade! Um tema para depois! Foi aí que a dita cuja mulher, esfalfando-se, resfolegando-se veio correndo em minha direção. Fez um gesto de medidas à altura do seu peito, algo como um metro e vinte centímetros de altura e queria uma “ancureta” daquele tamanho. Em troca me daria um capão  que estava cevando em seu terreiro. Levei na brincadeira e disse que queria três frangos-capões, ela achou muito. Demais! Disse-lhe então que uma vasilha daquela custaria em torno de cento e vinte reais. Deixei a troca por dois frangos-capões. Ela topou!
A “ancureta”, da qual ela tanto se agradou, comporta algo como 180, 190 litros de água. E então, sem visar os seus frangos de terreiro quero já na próxima viagem, levar-lhe uma “ancureta” consistente em uma caixa d’água de 500 litros. Eu já imagino que essa mulher não vai mais dormir e vai festejar esse bem pelo resto da vida. E agora quem não dorme mais sou eu, enquanto não levar-lhe essa... “ancureta”. Mas... uma coisa é certa: se ela me der um frango do terreiro, claro, vou aceitar, alegre, contente e satisfeito,  afinal... ninguém é de ferro... e, uma “ancureta” ali, é um bem mais que especial, ao alcance de poucas, capaz de deixar qualquer uma sem dormir.