O SÍTIO DE DONA TETÉ
Naquele meu chão de outrora, feitos em caminhos íngremes, estreitos e “visagentos”, cujas veredas ali chamam-se “estradas” –  que servem àquela gente em andanças a pé ou em lombo de animais,  tem um eterno e abençoado sítio frutífero à beira do caminho,  que pertenceu a uma matriarca feita de em mão abertas e pés do chão – Dona FIRMINA DE BELA. TETÉ, para os íntimos e para todos, enfim. O sítio já tinha creio que  mais de meio século quando o encontrei na minha criancice, inteiramente livre e aberto, sem cerca e sem mais nada. Não conheci o patriarca que o semeou e qual num deserto árido, levantou-se um oásis em diversas espécies frutíferas: cacau, “mangas-de-espécie” jaca, abacate, cupuaçu, pequi, fruta-pão, jaracatiá, juçara, pitomba, cacau-do-mato...
Esse santuário  de tantas riquezas era conhecido também  como o “MANGÁ DE FIRMINA DE BELA”. E, ainda que pertencente à sua dona, era ao mesmo tempo um objeto do acesso público, pois que, à beira do caminho, sem cerca e sem vigilância, todos que passavam por ali com aquela fartura ao alcance, logo metiam a mão sem cerimônia e sem  culpa -  de tão livre e aberto quanto (em parte) nos dias de hoje.  Muitas das vezes, íamos “decretado” ao “Mangá de Firmina de Bela”, à cata de mangas espalhadas pelo chão. Aí, num ato de mesura e à plena liberdade se a encontrássemos em casa, pedíamos à Dona Teté para juntar uma “cofada” de manga. Era fazer o pedido Dona Teté já deliberava: “pode juntar”. De posse do alvará de autorização  carregava-se tudo e voltava-se para casa  com o bisaco cheio,  ao máximo de quanto podíamos carregar.
Havia ali, quase a poucos metros do oitão daquele casario em palha e chão batido, de Dona Teté, uma linda e formosa mangueira em meia idade – de “manga cheirosa”, que juntamente com outras da mesma espécie – todas “manga cheirosa” - era a grande tentação daquele sítio. Como também é certo que logo mais adiante e nesse entrelaçado de tantas frutíferas, um “cacoal”, cheio de frutos do cacau o  ano inteiro; uns verdes, outros “de vez”, outros maduros e assim compunha-se uma verdadeira aquarela da natureza, naquele sítio atraente, tentador e gostosamente sombrio - de Dona Teté.
Invadindo aquele santuário, de cara, três frutos despertavam a nossa cobiça: primeiro as “mangas cheirosas”; das quais logo enchíamos o bucho e o jacá (que ali chama-se COFO); depois o cacau que a gente “comia” até se fartar e, para completar a gulodice, encarávamos as jacas maduras que encontrávamos pela frente. E nessa sanha nem Teté, nem seus filhos, não reclamavam nem proibiam.  Enfim era a servidão, o domínio público que ali se compunha manso, sobre a coisa alheia. 
Teté então foi em toda a sua existência – consoante assim posso testemunhar – essa matriarca de mãos cheias, de coração aberto; de mãos à caridade, sem fazer caso de absolutamente nada. E suas filhas e filhos e genros e noras moravam quase todos ali por perto mas ainda assim essa RIQUEZA continuou à solta, onde todos juntavam, comiam e carregavam. Usavam e abusavam. Como até hoje, até!  Dona Teté  ali  era, talvez, a que menos tirava partido do seu sítio de tantas riquezas: extraía azeite de andiroba; também comia as suas “mangas cheirosa” e, em cargas de animais, vendia suas jacas na VILA. E, por temporadas fazia “chocolate”, do cacau que dividia com os outros. Esse era o seu proveito. O resto era dos filhos e genros e noras e do povo que pedia e outros  que nem pediam. 
Ainda assim com  sua família à sua volta, com tanto escancaro, sem cerca e sem porteira, o  SÍTIO DE FIRMINA DE BELA é(ra) como um rio que deságua o ano inteiro, a vida toda, sem nunca secar. Justo essa riqueza que nem o adeus de sua dona, nem agora com as poucas divisões em arame farpado dos seus herdeiros, nem o tempo em mais de cem anos foram capazes de esgotar. Esse é o sítio de Firmina de Bela que o conheci na criancice e que continua, em parte,  tão despojado, tão aberto, tão farto e rico como até hoje. Por incrível que pareça!  Um desafio a que muita gente talvez nem percebeu, como bem assim são as coisas do “domínio público”. E TETÉ, a dona Firmina de Bela, continua viva na minha lembrança e na minha gratidão.
Recentemente estive naquele santuário que na minha criancice foi terreiro dos meus “aproveitos” e malinações; de onde saía carregado e o bucho cheio tantas vezes. E ainda que a gente não pedisse, ela se antecipava: “pega umas frutas e leva pra ti”. E de onde até hoje posso ver a complacência e o despojamento de DONA TETÉ e ouvir aquela voz suave, meio trêmula da velha matriarca. - Bênção Dona Teté – Deus te abençoe, Quelé! 
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Pois bem, estando recentemente nesse santuário, tão conhecido e tão repisado de outrora, um pé de cupuaçu à beira da estrada, à frente da casa da minha cunhada-NECA, neta de D. Teté, chamou a minha atenção. É que o conheci  quando eu era um garoto e ele, o “cupuzeiro”, já nos primeiros frutos. Crescemos e cada um de nós foi fazendo a sua história. Faz anos voltei por lá. E o que vi? Uma árvore decrépita,  de um lado galhos secos como que vítima de uma doença, enfraquecida e morta em parte. Pareceu-me condenado. E fui embora com aquela imagem tão íntima e tão própria do Sítio de Dona Teté, onde tudo ali se fez e se faz ao capricho da natureza. Franqueza! Beleza! Riqueza!
Hoje, quando volto por lá, o que vejo?! Qual um filho que toma as rédeas dos negócios  do falecido pai! Um “cupuzeiro” novinho em folha, rebento da velha cepa, bem composto, lindo, maravilhoso com seus frutos em formação. E, como sempre à beira do caminho, onde as pessoas arredam para nele tão topar; onde ele deixa seus frutos para quem os encontrar e pegar. Contemplei-o por algum tempo, voltei a contemplá-lo depois  e bem ali tecemos lembranças de um tempo que se foi, lembrando velhas origens: eu ainda nas primeiras letras e o seu pai nos primeiro frutos. E ao silêncio da madrugada quando dali parti, revi na mente a pranteada Firmina de Bela - a eterna e despojada Dona Teté – dona de um coração e mãos abertas e daquele sítio de tantas riquezas onde tudo se refaz o tempo todo e a vida inteira - rico e abençoado - como aquele  lindo “cupuzeiro”, sereno,  solteiro... à beira da estrada.  E tudo ali, qual um rio que deságua a vida inteira...