CASA DO ESTUDANTE
A primeira noção que se há de ter sobre uma CASA DE ESTUDANTE, onde mora uma “macharada” de colegiais, todos rapazes, solteiros,  diferentes idades, “irresponsáveis”, é que aquilo seja um covil desorganizado, uma zorra, uma casa de mãe Joana, uma esculhambação.  É o que se há de pensar. Certo? Errado! 
Carrego comigo a grata experiência e oportunidade de ter morado em duas casas de estudante. A primeira a nível secundário, onde fiquei por quatro anos; a  segunda a nível universitário, também por quatro  anos. Oito anos no “currículo” de supostamente diferentes moradias, não é coisa para qualquer um. Considerando ainda a vivência por um bom tempo nos antigos “pensionatos” e outros tantos em “comensal” de restaurantes coletivos. Lembro aqui da CASA DO ESTUDANTE SECUNDARISTA DO MARANHÃO, onde só vivi, plantei e colhi.
Admitido na CASA DO ESTUDANTE, fui morar “lá embaixo”, num quarto coletivo chamado “GERAL”, que acomodava  um dúzia;  destino, aliás, de todos os calouros, os novatos.  Na parte superior, dotada de banheiro coletivo e vários quartos que abrigavam meia dúzia, cada um, oito no máximo – era como se “lá em cima” fosse os camarotes com ar condicionado, frigobar e TV em cores e, lá embaixo  a galera sofrida, de cara para o sol. Nisso o pessoal lá de cima, volta e meia, “tirava sarro”, “zombava” e, a palavra “GERAL”, era como se fosse aquela ”casinha” que fica lá... no fundo do quintal. Mas tudo brincadeira, gozação, sacanagem, até porque todos ali, de regra,  passaram pela GERAL.
De minha parte, assim como todos ali, ÉRAMOS FELIZES. Não havia queixa nem reclamação, nem lamúrias. Ainda que quarto coletivo de porta e janela apenas “encostadas” ao ermo da noite, ali não se registrava nada de suspeito. Nem pequenos “desvios”, nem uso indevido de coisa alheia, nem desvio de conduta. Finalmente, cada qual por si, na luta pela sobrevivência e pela escolaridade. Alguns poucos cursavam durante o dia, grande maior parte à noite, todos na escola pública; só alguns empregados, grande maioria esperando uma “ajuda” de casa. Registre-se ademais que, em pleno vapor da Revolução de 64, a CASA não registrou um único impasse com o regime militar. Contrário disso ainda recebeu auxílio do governo.
Das muitas cenas que guardo das lembranças da CASA DO ESTUDANTE, era quando  a gente ali ao terraço, luzes acesas, dez, dez e meia da noite e todo o mundo chegando ali, vindos de suas escolas. Aquele horário de chegada, aquela chegada em grupos, seis, oito,  dez  estudantes, me dava a ideia do compromisso, da responsabilidade, da disciplina e de todo um ordenamento natural de como se comportava aquela turma colegial que morava na CASA.
Havia no meio uma regra ética natural em que o morador tinha acesso apenas ao seu quarto e às dependências coletivas da casa. Não que fosse proibido acessar aos aposentos alheios, fosse por amizade ou conveniência, mas, de regra, ninguém vivia trançando pernas pelos aposentos dos outros. E reinava na casa a mais perfeita harmonia o sossego, o equilíbrio a paz social e  a convivência cordial. E... cada um por si e “Deus por todos nós”.  Foi lá onde aprendi a lavar e a engomar. Como outros tantos assim faziam.
Durante quatro anos ali, jamais ouvi dizer que foi furtado ou “desapareceu” um objeto qualquer de algum dos moradores. Também nunca se ouviu falar em droga, nem mesmo o uso de cigarro convencional. Quiçá um ou outro, talvez. Outra coisa ali presente era manter a discrição, a concórdia e um convívio saudável para não causar incômodos à vizinhança. Tem mais, a ninguém era dado circular na parte externa ou frontal da casa, SEM CAMISA. E, em eventual visita de alguma namorada a algum morador da casa, a presença feminina, ao máximo, poderia permanecer em um pátio com vista livre para duas ruas ali existentes, de vez que A CASA  fica em uma esquina. Era a regra, o costume.
O que muito e sempre me impressionou na CASA DO ETUDANTE era a independência e liberdade com que vivíamos ali. Ninguém controlava ninguém. Se alguém eventualmente dormia fora ou chegava na madrugada ou no dia seguinte ou três, quatro dias ou uma semana depois, ninguém lhe perguntava por onde andou o que fez ou porque não chegou. E, apesar de toda essa franca liberalidade, ninguém se excedia ou abusava do direito de ir e vir, sendo que a regra geral era: da casa para a escola, da escola para casa ou rumo ao trabalho e vice-versa. Mercê de lembrar aqui uma honra: PEDRO CARLOS DOS SANTOS, O  PC, integridade em pessoa, senhor de todas as virtudes. Era o ecônomo. e “administrador geral” da CASA. Unanimidade, por seus méritos.
Na casa, na parte superior havia um quarto de veteranos, denominado de “POTE”,  espécie de “cúpula” de faz de conta. Mas era como se fossem os “oficiais” em meio aos recrutas. Por vezes, em final de semana, uns quatro  ali se juntavam e bebericavam suas pingas. Por vezes falavam alto e, como sempre tiravam “sarro” com a turma da GERAL. Mas ninguém leva a sério, nem eles mesmos. Tudo brincadeira, tudo troça e mais nada.
No segundo ano, quando os quartos “lá de cima” desocuparam, eu fiquei dividido se “subia” ou se permanecia na GERAL. Acabei indo morar ”lá em cima” mas por algum tempo o coração ficou na GERAL. No  novo quarto éramos uns cinco, tudo tranquilo e tudo calmo, sem uma única reclamação de quem quer que seja.  E para ingresso neste ou naquele quarto, bastava haver a vaga. Não havia seleção, nem barreira, nem cara virada. E quando chegavam os finais de semana, parte da turma ia para festas, cinemas, bailes populares – cada um na sua - mas ainda assim não se fechavam portas, nem se trancavam malas, não se escondia nada. E ENTÃO ÉRAMOS FELIZES E NÃO SABÍAMOS.
Duro para mim, foi aquele sábado, começo do ano, manhã de sol, quando tive que deixar a CASA DO ESTUDANTE. Foi quando senti que bem ali foi “o dia em que me faltou terra ao chão”,  um tema que já reescrevi por umas tantas vezes.
Anos tantos se passavam e de tempos em tempos eu voltava em visita à Casa do Estudante. Em duas ocasiões apresentei-me como ex-morador, contei estórias e fiquei hospedado, no quarto e na cama em que fui ocupante.  Por último, faz anos, voltei por lá. Vi que namoradas ou “paqueras” dos moradores frequentavam a casa, visitavam seus quartos e havia até o caso de um morador que se encontrava doente e que a namorada teve “permissão” para  acompanhá-lo.  Senti-me estupefato e decepcionado. Vi então que as velhas regras éticas, nesse ponto foram quebras. Não gostei. E nunca mais votei à CASA DO ESTUDANTE, aquele meu velho berço, de GERAL e de “lá em cima”, onde aprendi uma dura lição que foi quando tive que sair da casa, ... O DIA EM QUE ME FALTOU TERRA AO CHÃO.