“QUEM NÃO TEM IRMÃO BRINCA SÓ”
Guardo da minha mãe lições, imagens, momentos, passagens. Uma banda da sua vida e toda a nossa vida. Guardo a sua voz, seus passos, seu caminhar, sua fé, seus conselhos, suas pregações, a simplicidade e a humildade que lhes vieram do berço. Ela que se foi aos 87 anos. Dela me lembro numa passagem isolada quando que eu tinha menos de cinco anos.
Guardo de minha mãe uma lembrança, quando um dia, começo de noite, ela me falava que as estrelas, “os astros”, tinham a ver com o nosso destino. Não sei de onde a minha mãe tirou aquilo, até porque aquilo nunca foi conversa naquele nosso meio, num tempo em que menino não participava de conversa dos mais velhos, também não podia perguntar. Um tempo em que não tinha um rádio e a noite era tocada à luz de lamparina, que por vezes nem isso, porque faltava o querosene.
Guardo de minha mãe, aquela mulher “trabalhadeira”, determinada, guerreira do sol a sol e incansável que durante toda a vida levantava-se “com o escuro” e, a cuidar dos afazeres, encontrava o dia ao amanhecer. Dela guardo o prato, a colher, a xícara e o copo com que levava “uma merenda” para este seu primogênito. Dela guardo seus últimos momentos, respirando por aparelhos na UTI do Hospital Dr. Carlos Macieira, em São Luís, como guardo aquela noite em que jazia inerte com os filhos e parentes em volta, como guardo aquele momento em que descia à terra para transformar-se no pó de que viemos.
Guardo da minha mãe aquele afago, o carinho recíproco, os laços de família que ela tinha para com a minha MARIA NILSE, quando as duas saíam por aí, pelos Ipanema da vida e outros do ramo com a sua nora e “assessora” comprando louças, plástico e vasos, xícaras, encomendando bordados em toalhas, ao desvelo da nora a quem única e carinhosa chamava-a de “Branca”. Ela mesma quando à véspera dos seus últimos suspiros, sem fala, inconsciente, contorcia-se toda ao ouvir a voz de “Branca”. E outras vezes que quando eu lhe dizia: “MÃE, Branca, está aqui”. Parece até que minha mãe a um passo de sua última morada queria dar um salto, recomeçar, abraçar e deixar-se abraçar pela nora querida e tantas vezes companheira e confidente.
Nesse universo de tantas lembranças, lembro de minha mãe, na cozinha de chão batido,  à beira do jirau que era a sua pia-de-cozinha, ou mesmo ao terreiro aberto do quintal, ela na peleja de seis, sete, oito filhos, tudo pequeno, tudo traquina, tudo danado, quando ela dizia em ato de reprovação e ameaça: “pinto que não ouve chamado de mãe, gavião come”. Quando eu ouvia aquela frase eu já sabia que “a chapa começava a esquentar”. E volta e meia, em tantas lidas, a advertência: “pinto que não ouve chamado de mãe, gavião come”.
Um dia, o tempo senhor da razão me mostrou esse exemplo ao vivo e em cores, à beira do nosso terreiro. O gavião, no voo rasante e traiçoeiro, carregou um pinto que, distraído, distanciara-se daquela inconformada galinha que ficou a brigar com o vento. Aí minha mãe disse para uns três traquinas e “atentados” que estavam à sua volta: “Taí, eu não disse que pinto que não ouve chamado de mãe, gavião come?!”.
Como que jogados a um canto, ao esquecimento, deixei para trás aquelas lições mas... de tempos em tempos eu me lembrava, como me lembro de tantos outros conselhos que minha mãe pregava. Um deles dizia: “Quem não tem irmão, brinca só”. Em verdade, àquele tempo, muita coisa “entrava por um ouvido e saía por outro”. Quer dizer, a traquinada não levava a sério, não absorvia aqueles conselhos. Depois, os traquinas foram crescendo, foram se “espalhando”, a vida mudando, cada qual para o seu canto e DONA  LOLA não vivia mais naquela de que “quem não tem irmão brinca só”, nem de “pinto que não ouve chamado de mãe...”.
Eh! Mas um dia a semente que foi plantada na boa fé e à graça do CRIADAOR, um dia nasce, floresce, dá frutos. Delas que, ainda que  vergastadas pelo vento, aquele do “entra por um ouvido e sai por outro” como que... plantadas ao deserto ou ainda que espalhadas entre pedras, ainda assim, creia, um dia floresce. Digo isso porque sou testemunha ocular de exemplos esses e outros tantos. E não só um omisso “testemunhas” ou “ouvinte”, mas qual um artífice do fazer, costurar e materializar e edificar e enfim testemunhar que, nem as lições nem as sementes se foram em vão!
Neste período em que tenho vivido um estendido exílio doméstico por conta da saúde, vergastada em vários pontos, no entanto; busco sinergia nas releituras da minha vida, parte das quais transcrevo ao papel, ao jornal, ao rádio. E, mais importante: à minha consciência. De vivências essas, domingo passado, em um determinado instante, eu me senti a só, perdido em mim mesmo, acorrentado por tão pouca coisa, por quase nada. Contido em mim mesmo. Sem forças. Precisava de alguém pra ajudar na partida!
Foi aí que... lembrei-me dos conselhos da minha mãe quando ela dizia: “Quem não tem irmão brinca só”. E então, mãos à obra! E, como não tinha irmão por perto e como ali tudo me pareceu um deserto e como até na imensidão do deserto, como bem assim nas cerradas paredes de concreto há sempre um raio de luz, que pode nos mostrar o caminho certo; sozinho encontrei a saída, o caminho e aquela lição que ainda que tenha “entrado por um ouvido e saído por outro”,  qual a semente levada ao vento, agora dá os frutos que acabo de colher. E, sozinho, tive que me virar. E me virei. E me revirar, e me revirei. É mãe, como a senhora dizia: “QUEM NÃO TEM IRMÃO, BRINCA SÓ”. Foi como “brinquei”.