“TANTA LARANJA MADURA / TANTO LIMÃO PELO CHÃO”

Deixei a casa materna, aos sete anos de idade, na garupa do cavalo de meu pai, rumo à escolaridade na VILA, ficando para trás a minha mãe com o seu choro abafado pelos cantos, enquanto eu seguia de coração partido rumo ao desconhecido. E nesse ponto vendo o meu pai decidido. Enfim, uma prova de fogo para todos nós. O meu pai despojava-se de uma mão de obra na roça e nas serventias, além dos gastos sofridos de um roceiro e por tantos anos, no que era criticado, inclusive numa prole de outros mais.

Com o “terceiro livro” do mato, na VILA, fui deixado no “segundo ano primário”. Continuo em calças curtas, agora de farda em azul e branco. Em princípio, sentia-me como numa pátria distante, sem falar aquela língua e rodeado de estranhos. À “hora do recreio”, lá pelas dez, as moças de mãos dadas, em círculo, entoavam inocentes cantigas de roda, delas que aprendi e sei de cor, tal a sinfonia que aqueles cânticos me despertavam. Mas, ainda assim, era como se tudo invadisse o meu subconsciente, sem eu me dar conta do arquivo. Tinha aquela do “Sapequei o pau no gato”, aquela outra do “Eu fui no tororó”,  “Se essa rua fosse minha”, “Escravos de Jó” e a “Terezinha de Jesus” que recitava: “...Tanta laranja madura / Tanto limão pelo chão”. É aqui onde quero chegar.

Tantos anos se passaram, mais de 20, mais de 30, mais de 40, mais de 50, mais de 60 e durante esse tempo, pelas veias, pelos neurônios, pelas engenharia da mente e por tudo o quanto o CRIADOR me fez e me faz como ser humano - acredite - a cada pelo menos DEZ ANOS, eu, saudosista e “caçador de mim”, faço um texto em nova leitura, lembrando aquelas cantigas de roda. Agora aos 70, novamente, estou de volta com aquele cenário e  aquela cantoria, na “hora do recreio”: “TANTA LARANJA MADURA / TANTO LIMÃO PELO CHÃO”...

Faz mais de mês que estou recluso e exilado em minha casa, atacado por mazelas em cascata. Eu que durante 70 anos tive, tanto quanto minha mãe, uma saúde de aço, vejo agora a cascata que despenca. EIS A VIDA! É como digo. Ainda nos meus dourados tempos colegiais, aprendi uma lição do filósofo romano Horácio, 65 a.C. - 8 d.C. “Cada dia que surge, constitui uma nova vida para quem sabe viver”.

Esta fase reclusa domiciliar (ainda bem que não preciso usar tornozeleira eletrônica), associada à lição de Horácio, tem me levado a observações e reflexões sobre tantas coisas que via mas não olhava ou olhava e não via. E se via ou se olhava, aquilo passava como uma nuvem que passa. Sim, porque “...quem não vai pelo amor, vai pela dor”. Agora estou vivendo na pele, no corpo e na alma esse “drama nosso de cada dia” materializado em... TANTAS LARANJAS MADURAS, TANTO LIMÃO PELO CHÃO.

Agora eu estou ali no Juçara, naquele setor de milionárias e sofisticadas clínicas médicas que se levantaram e se levantam, em parte, sob as agruras da saúde e do sofrimento alheio. EIS A VIDA! E vejo um intenso movimento de vai-e-vem das pessoas – umas que vão pelas mãos dos outros, outros que arrastam-se por si mesmos; outros que caminham em passos contados, todos que carregam uma sacola branca com suas radiografias, laudos, exames, receitas e outros papéis. Uns que têm plano de saúde, outros que seus planos estão nas mãos de Deus. Outrora laranjas maduras, agora limão pelo chão!

Nas clínicas, à sala da espera, a gente vê no rosto das pessoas o sofrimento, a incapacidade, a invalidez, o caminhar lento, o olhar disperso, perdido, a saúde comprometida, outras por um fio; a vida que se vai. A gente vê os passos trôpegos, arrastados, interpreta gemidos, ranger de dentes, vê gente que carrega  hastes de madeira ou alumínio para substituir as penas; cadeiras de roda para locomoção, outros que levam embalagens especiais, em cores e ao vivo para os seus dejetos fisiológicos, entremeados de sangue, até. É TANTO LIMÃO PELO CHÃO...

Saio dali, vou pelas ruas da vida, vejo idosos e doentes sentados às portas. Deixados ali pelas mãos dos outros. Porta da rua, sombra da tarde para o “lazer”, para espairecer, “olhar carros e gente”. Fazer o quê? Como a esperar os dias que lhes faltam. E outros tantos, imagino, relegados à sina e penitência ao fundo da rede, ou sobre a cama, inertes, outros pungidos de dor, tresnoitados de insônia, submetidos à tontura, ao câncer –  seis, sete, oito, nove remédios na diária. Autoestima depressiva. É a outra banda em meio às tantas mazelas. É TANTO LIMÃO PELO CHÃO!

Agora é sábado. É dia de cavalgada. A cidade está tomada de gente, cavalos e carroças, zoada. É pândega, é bebedeira, mulherada, macharada, som-pauleira e os “cambáu a quatro”. Agora eu posso ver uma procissão de gente respirando saúde por todos os poros, entregues e dispostos. Passos firmes, braços fortes, sorriso largo, saúde que se esbanja, que se espalha, que se derrama. É TANTA LARANJA MADURA!

Vejo rapazes, crianças até; homens, mulheres montados e dominando seus animais, cerveja rolando. Vejo bravatas, botos cor de rosa, grupos de arco-íris, carroças carregadas, quase todo o mundo “a caráter”, óculos escuros, trajes de caubói, clima de vaquejada. É a feira agropecuária! A cavalgada, em certo ponto, lembra um hangar da Força Aérea Americana, com “muitas caças” de todos os modelos e funções, em ponto de guerra e entregues aos horizontes sem barreiras. E num solitário e único carro a que foi permitido compor o comboio, duas fêmeas, “dois aviões” de bombardeio, invencíveis, implacáveis, última geração, naturalmente com incontáveis horas de voo. Enfim: TANTA LARANJA MADURA!

Agora eu paro nessa passagem entre as clínicas e as sacolas carregadas de laudos e exames por uns que se vão e outros que são levados e a cavalgada com tanta gente respirando e derramando saúde, com passos firmes e braços fortes e “aviões” no ar... neste mundo sem cabresto e sem porteira e com a libido a mil megatons. É questão só de instantes para acionar a “bomba” ao corpo de cada “extremista”. E volto ao meu grupo escolar primário, com as moças nas cantigas de roda, na hora do recreio: “TANTA LARANJA MADAURA / TANTO LIMÃO PELO CHÃO”.