A “MOSCA DA PINGA”

O meu pai não era de beber, nem de fumar. Essa era a regra. Mas como toda regra tem exceção, ocorria que em distantes ocasiões, vez por outra, em meio aos amigos, entretinha-se na conversa e  aí, rolava uma pinga, um cigarro. Tudo só por “enfeite”, nada de vício porque o meu pai não tinha vício, vírgula, seu vício era... mulher! Incorrigível, inveterado. Inconsequente, até.

E quando o meu pai, naquelas circunstâncias entre os amigos e uma pinga, eu e meu irmão, por decreto há muito publicado, deveríamos ficar longe dali. Disso já sabíamos. Era a intenção de manter o saneamento e os filhos longe de bebida alcoólica. Detalhe que me chamava a atenção era o jeito desajeitado do meu pai ao fumar um cigarro. Em segredo, achava graça em vê-lo ao desajeito e eu ficava convencido de que  ele era só um fumante ocasional. Melhor assim!

Certa feita eu lá pelos meus 11 anos e lá por casa havia um homem, carpinteiro em serviço, que era chegado a uma pinga, antes do almoço, no que o meu pai fazia-lhe companhia, mais pelo operário e menos pela pinga. Numa dessas, passei por perto. Ah! O mundo quase acaba na minha porta! Meu pai, entretanto, jamais imaginaria que bem ali e eu de passagem, cheiro tentador, inebriante e paradisíaco, acabara de ser picado pela “mosca da pinga”.

E, sozinho em meus pensamentos, me prometi que um dia também teria o meu dia de pinga. Coisa da TENTAÇÃO; e fiquei por algum tempo,  sob os efeitos daquela “picada”, daquele aroma tentador. Depois esqueci e já nem me lembrava mais.  Ocorreu, no entanto, que num certo final de semana, setembro de 1959, a Escola Técnica Federal do Piauí veio jogar com a nossa Escola do Maranhão, pela passagem do aniversário desta, numa época em que ainda existia e eu morava no INTERNATO  da Escola.

Acho que pelo viés da TENTAÇÃO, naquela noite,  juntei-me a um grupelho da delegação do Piauí, o qual estava às voltas  e às escondidas com a compra de uma garrafa de pinga. Tornei-me o “cicerone” do grupo e duplamente prestigiado inclusive por conseguir um copo, a que tivemos àquela hora a dificuldade de encontrar. Copo e bebida apostos, o líder do grupo me pergunta: Tu bebe, Maranhão? Confirmei, na bucha! E lá se vão quatro dedos (espalmados) de pinga no copo!  Os caras  “gostaram de ver”.  Nova rodada e... mais uma Maranhão?  Bota! Respondi.

A turma já iniciada na pinga ia só “levando devagar, bibicando”, enquanto que o líder e eu éramos os mais “chegados”. Eles, porém, estavam longe de  saber que aquilo era o meu “batismo de fogo”. E que nunca tinha tomado  antes uma única gota de pinga. Ao todo foram quatro doses em quantidades decrescentes. Naquele pique, quando a garrafa já ia secando, eu já estava “pra lá de bagdá” e então  me despedi do grupo  e desci ao declive de acesso à Escola, chamando urubu de “meu louro”, tropicando e “trocando as pernas”. Ainda bem, noite avançada, ninguém por testemunha!

Naquele domingo o almoço foi “ajantarado”, então eu deixei parte da “xepa” pra comer depois. E foi o que fiz!  Encarei a janta e... joguei-me de corpo inteiro na cama que me esperava. Aí não! Aí o mundo começou a rodar. Como eu vi que ia cair, então segurei-me nas duas hastes verticais do beliche mas...  não teve jeito, buááááááááá - mandei tudo de volta, em pleno internato, com regras rigorosas e  tolerância  zero. Bêbado? No internato? Aquilo era o “crime da mala”! Coisa pra  ra-re-ri-ro-ru-a ou “expulsão”. Como se dizia na época.

O silêncio em luzes apagadas, no entanto, tomava conta do grande alojamento com 144 homens,  que ocupavam beliches duplos. Isto é, cada beliche para duas pessoas (uma embaixo e outra em cima). Para destruir a cena da “infração”, corri ao vestuário, catei algumas roupas que ia encontrando  e... fiz a faxina. Para não deixar pista, fui à grande área aos fundos  e... assim como fazem os gatos, também enterrei  as roupas com dejetos e tudo.

No dia seguinte eram uns e outros numa reclamação inédita: levaram minha calça, levaram minha camisa, levaram minha cueca.  E eu lá, na minha, retrancado,  numa ressaca que, simplesmente, durou quase uma semana.  Mas sem dizer para absolutamente ninguém porque a minha conduta poderia resultar na expulsão do internato e até mesmo da Escola. Olha o drama!!!

Algo como uma semana depois, o Inspetor,  guardião do internato,  tem comigo uma conversa reservada. Disse que soubera da minha aventura alcoólica, mas que não me entregou à direção porque eu não tinha histórico de bebida alcoólica e porque corria o sério risco de ser expulso do internato.  Então fez de conta que não sabia de nada. Era como se dizia naquele tempo: “Fui salvo pelo gongo”.

Santo remédio! Essa foi a minha primeira e única aventura pelos malditos labirintos da cachaça. Foi o suficiente para rejeitá-la  até os dias de hoje. E, algo como cinquenta e sete anos depois, o meu organismo tem total repulsa por esse líquido MALDITO, a partir do  ODOR a que exala – aquele mesmo odor que há 57 anos foi, para mim, a diabólica tentação da “mosca da pinga”.

E para que não se diga que sou um “falso moralista”, tomo discretamente  uma cervejinha, é verdade, algo como duas latinhas. Três no máximo e... não mais que isso. Paralelo a essa estória, eu ainda teria mais um capítulo, que eu deixo pra depois. Me aguardem!