“REPÚBLICA” (a casa de Mãe Joana)
A culpa foi do Gonzaga. Gonzaga era assim: um cara dinâmico, despojado, despachado, lutador, um aventureiro como tantos ali. Gonzaga foi quem teve a ideia, movimentou-se em tudo e, da noite para o dia, fundou uma “REPÚBLICA”. República é(ra), a casa de um determinado grupo social; moradia coletiva com predominância dos interesses individuais, anárquica, desorganizada e com tendências para a promiscuidade, o trote, a esculhambação. Pois é, a “culpa” foi do GONZAGA.
Gonzaga foi quem teve a ideia! Insatisfeito com moradia de um quarto, juntamente com dois outros mais outros ali, da noite para o dia, fundou uma República. Era uma casa “quadrada” de quatro cômodos também “quadrados” em três e meio por três e meio metros: uma sala, uma cozinha, dois quartos, piso vermelhão, com banheiro e sanitário ao fundo do quintal. Móveis e utensílios: seis tamboretes em couro cru, uma mesa pequena, uma geladeira zerada, fogão com botijão, duas ou três panelas, algumas colheres, meia dúzia de copos e o saco de coar café. Só isso e mais nada. Pronto! Estava criada a república.
Vai que um convida outro, outro convida outrem – todo o mundo ali aventureiro e dependurado e, em questão de poucos dias, tinha uns doze, catorze morando na casa, outros tantos que eram comensais, mais meia dúzia que por ali faziam ponto, rondavam. A zorra chegou a uns vinte e tantos machos a um só tempo, em torno da casa. Ainda pela manhã, todos os dias, GONZAGA fazia a “cota” para a despesa do dia. Algo como hoje, quatro a cinco reais para cada um. E quanto maior a arrecadação diária, maior a fartura à mesa. Pouco depois, OMAR (o Bom-Só), “putanheiro” todo, juntou-se ao grupo e, com o GONZAGA, faziam as compras e lideravam o terreiro. Nesse zoológico, figuras e fatos marcaram época, outros que deixaram a marca do pé na calçada da fama.
Um dia GONZAGA e OMAR juntaram-se e compraram uma RADIOLA zerada para a turma pagar, mas ninguém pagou. Havia dois ou três discos. E dançava macho com macho, na boa, tudo no fuzuê, na brincadeira. Um disco marcou: “Forró do Tio Augusto” - Lá na casa do meu tio Augusto Nunes Pereira / Velho pai de onze fio e neto de muntueira / Quando me lembro da fiarada solteira/ que completava uma orquesta inteira / Tanguá dançava todo sábado e domingo/ sob a batuta de Augusto Nunes Pereira - Era Laura no bandolim / Jurema no violão / Juracy no clarinete/ Milton pandeiro na mão / Didi no cavaquinho/ E de banjo o euclides / Tio augusto Augusto nas colhé... GONZAGA era um cara-de-estrela! Empregado e seus dois irmãos também por si empregados. Um deles não levou desaforo pra casa, fuzilou o desafeto e... caiu no trecho; o outro era bom de boia e protegido da cozinheira. Tinha uns estudantes “brefados”, sem dinheiro, que “filavam” a boia e misturavam-se com a patota.
Tinha o PLACA, um taxista, desses que sabia da vida de todo o mundo. Tinha o PRIJÓ, um baixinho, carecão, cheio de lábia, mutreteiro todo, que vendia umas bijuterias e não acertou mais o caminho de casa. Havia um deles lá, empregado, ganho médio que emprestava o seu dinheiro a um amigo, mas aos domingos dormia cedo e com fome para não gastar com o lanche. Era repudiado, tachado de “miserável”, teve passagem curta na república. Teve o ELIUDE, um fogoió que mexeu com moça. Entre os dromedários havia o SEU RIBA, um coroa, pouca telha, desses que penteia o cabelo para cima da careca. SEU RIBA falava em fazenda/s, em negócio/s, terrenos, cerâmica, mas vivia na penúria. Nesse descampadão, apareceu um negão, bigodão, cheio de onda, metido a endinheirado, amigo de SEU RIBA, não morava na república. E todas as noites no “puteiro”. Era só faro-fa-fa. Dublê de fazendeiro, corretor e grileiro, era outro que só tinha uns trocados.
DONA LU... era a “nutricionista” do zoo e, na moita, estava de amores com o PRIJÓ. A turma da casa sabia e mesmo com toda a esculhambação que reinava, havia discrição. E volta e meia, PRIJÓ, na cara limpa e na publicação dizia para um e outro: “tou gamado na coroa... tu não vai me derrubar”. Geralmente às duas da tarde, ele, sonso, empurrava os retardatários para a rua a fim de ficar sozinho com a DONA LU... e no relaxo soltava o seu refrão com voz de malandragem; “... tu não vai me derrubar”. Era a senha e todos colaboravam... na boa!
Na república, apenas algumas poucas camas de solteiro, o resto tudo era rede! Então, um dia à ausência do dono, inventaram de armar a rede do cidadão, com uma linha, um fio. Aí altas horas, quando o sujeito ia deitar, negrada estava ligada pra ver a queda. Outros que desavisados, deitavam-se na rede alheia e as quedas se sucediam. Numa dessas o PLACA, taxista, chega do batente “morto-de-cansado” e dorme a sono solto até o amanhecer do dia. Só ao levantar partiu-se o cadarço de sapato que amarrava sua rede. Aí o PLACA chamou para a briga o f.d.p. Ninguém apareceu! Até porque, naquela casa-de-mãe-joana, neguinho só queria “paz e amor”. Dançava macho-com-macho; DONA LU E PRIJÓ deitando e rolando; quedas de rede se sucedendo, bolos na palma-da-mão com solado de “lambreta” no “jogo do vinte e um”. Sessenta metros quadrados até na tampa.
E naquela manhã de domingo, a jovem vizinha, dona de uma pele de veludo, inteira toda, acariciando discretamente aquele ainda sonolento. E as toalhas passadas ao corpo, pós-banho? E a bomba que explodiu o violão? E o veado que o cara ganhou no bingo? E o Coló comendo tudo? Tinha que inventar mais uma! Escuta só! Inventaram de, à noite, à altura da porta de entrada, entreaberta, colocar uma bacia de água gelada. Aí o cara chegava da rua, da namorada, do trabalho, da festa, do cabaré e.. ao adentrar em casa... um tremendo banho de água gelada! E todos “dormiam”, outros que “roncavam” e ninguém sabia de nada. Era uma armadilha inevitável! Dois, três numa noite! Por vezes a turma não aguentava, acendia a lâmpada e caía na gargalhada.
Ah! Sim! No meio dessa traquinagem teve um cara (um sonolento) que também caiu da rede, que também levou banho gelado, que perdeu o violão, e que ficou para a contar a história dessa REPÚBLICA (a casa de mãe Joana) Esse cara... SOU EU! É! Mas a culpa foi do GONZAGA! E triste daquela turma... se não fosse o GONZAGA.
Edição Nº 15630
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