CARTA AO RIO DE DOCA
Meu velho e querido “ Rio Grande”
- Dizer que te amo é muito pouco. Então eu digo que te amo, te amo, te amo.
Longe se vai o tempo, eu menino, moleque, rapaz e você sobranceiro, altaneiro correndo livre e leve qual um cavalo bravo, vindo das banda do “Poleiro” para enfim desaguar nas águas do Rio Pericumã. E quando o inverno acabava e o verão chegava, eu via que você diminuía, murchava, até que enfim, suas águas secavam. Cultivo um princípio de vida que me ensina que tudo na vida é um tempo, mas só agora descubro – que isso tem tudo a ver não só comigo mas... também com você.
Lembro-me de você em detalhes, mil detalhes. Lembro-me de você RIO GRANDE, quando a gente começou a te chamar de RIO DE DOCA – uma justa homenagem ao decano PAI VELHO (meu avô), teu amigo e protetor, teu fiel amigo, teu zelador. Ele quem zelava da “ponte” e do corrimão, ele quem zelava dos acessos, era ele – VELHO DOCA - quem clamava sereno: “não rocem na beira do rio, não rocem na beira do rio”. O rio era a divisa das suas terras mas ele falava para ambos os lados. E então o RIO DE DOCA, por ali, viveu até quando DOCA sobreviveu.
Lembro-me que faz anos, quando voltei por lá, era verão e você, RIO DE DOCA, estava só com um filete, um palmo de água. Fiz questão de caminhar a pé, pisar no teu peito, misturar-me contigo para declarar amor, amizade e, ali, na oportunidade, um rasgo de felicidade. Mas logo me invadiu uma frustração: é que ali, naquela passagem, estava assoreada e as barrancas desbarrancadas. E então pude ver que o que era um leito não é mais um leito, porém um multiplicado de várias correntezas, quase um alagadiço. Eu que pisei no teu peito, quer dizer no teu leito, saí dali ferido, ressentido e então me rolou uma lágrima e um sentimento perdido.
Naquele instante, muitas lembranças me açoitavam. Lembrei-me então que num dia de domingo, pouco ante do almoço, fomos ao rio para um banho. Éramos uns quatro moleques liderados pelo tio PEDRO DE DOCA. Tio Pedro nasceu ali, na beira; então ele “dominava” o rio. Nadava como se estivesse caminhando e ainda dava “pungas” com as duas mãos cortando água e produzindo um som que se espargia pelos igapós. Enfim, uma brincadeira. Vendo que o meu tio “caminhava” fácil sobre águas, eu da beira, lá em cima, logo pensei: “eu também dou conta”. E me joguei... Ah pra quê?! Fui levado pelas águas e entrei num pesadelo. Mas por incrível que pareça naquela instante eu só me lembrava da “bóia”, que enfim a gente encarou logo que chegou. Guardei em silêncio o sufoco porque se os meus pais soubessem da presepada... olha a taca!
Outra de você, meu querido RIO DE DOCA, aconteceu com o meu irmão ZÉ BRANCO, uns 10 ou 12 anos. Rio de cheio, passando por sobre a “ponte”, minha pranteada mãe seguia à frente tateando com os pés sobre a pinguela e BRANCO ia atrás segurando na saia da velha. Olha a armadilha! Não deu outra! e Zé, tibum, levado pelas águas. Mas aí o Deus Criador, ele que te criou e gerou aquela criatura, logo encontrou uma saída. O moleque no puro milagre sobreviveu para contar a história e para se tornar no exemplo de pessoa humana, de filho, de cidadão, de irmão, de personalidade e de caráter que é. Ímpar, em tudo!
Recentemente e mais constante, meu querido RIO DE DOCA, tenho passado por ti e sinto um vazio quando passo por aí. Por último, alto verão vi que fizeram um poço (uma cacimba) à margem danificada do teu antigo leito. Água rasa, gostosa, original. Em parte achei legal pois que era um manancial a serviço daquele povo sofrido. E tive a sensação de que naquele meio de pobreza era como se jorrasse lei e mel. Até aí, tudo bem! Mas quando olhei em volta, vi que aquele velho leito agora é um desastre só: várias artérias, tudo assoreado, desbarrancado. E, à beira do poço o lixo urbano: sacos plásticos, garrafas pet, outras de água sanitária. Ah, como doeu! E vi que tudo aquilo só conspirava, como conspira contra a tua vida Mas aí meu amado RIO DE DOCA, tudo me ensina que tudo na vida é um tempo; só um tempo!
Lembro de você, meu RIO DE DOCA que com as águas lá em cima, jorravas pelo igapós, que a gente só dava conta de chamar de “gapó”. O “gapó” era um manancial de riqueza. As roças de arroz que nele se faziam eram uma colheita e tanta! E quando os igapós corriam em água o peixe jandiá davam uma “bóia” e tanta. Ah, ia me esquecendo! Eu que sempre te vi como o meu herói, durante muito tempo, nos idos colegiais eu te procurava pelos mapas, até que um dia me disseram que tu eras só um “riacho”, um “ribeirão” e que rios assim não constam do mapa. Haja dor!
Meu velho e querido RIO DE DOCA, só agora posso ver o quanto você foi testemunha “ocular” de tantas vidas! Foi testemunha do teu vizinho Milhano, do outro lado, testemunha dos Pereira da então Vila Pereira. Testemunha do meu pai, da minha mãe. Testemunhou a meu Tio Pedro que nadava e dava pungas ao teu leito, Testemunhou a dedicação e despojamento do meu PAI VELHO em tua defesa e preservação; testemunhou a vida a meio sol do meu tio e Padrinho Raimundo de Doca, ele que até hoje me marca em profunda saudade. Testemunhou idas e vindas e final partida da minha avó JULIANA DE DOCA, que tombou – ela para um lado e a cabaça d’água para o outro, há poucos passos do teu leito.
Recente, faz uns dois anos, quando vi, meu querido RIO DE DOCA que tu te afogavas como te afogas em meio à ganância, ao egoísmo e à incompreensão dos que te rodeiam e de ti se servem e que assim caminhas para o teu fim, resolvi te dedicar numa placa metálica e bem edificada, entre a lápide e a homenagem, a seguinte mensagem: “RIO DE DOCA / O meu avô Doca Barros se foi / O Rio de Doca também se vai / E assim vamos todos nós”.
Tá lá! O que dizem e o que pensam eu não sei. Só sei que “na vida, cada qual faz a sua parte”. Só sei que você, meu querido RIO DE DOCA, que você é um rio que continua passando em minha vida e que, ainda que aos trancos e barrancos continua fazendo a tua parte”. E, testemunha silenciosa de uma pedaço da minha vida, só sei dizer: Te amo... te amo... te amo..
Edição Nº 15595
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