Triângulo da morte
Zé de Maria e Romualdo eram dois amigos inseparáveis. Trabalhadores de roça, onde estava um estava o outro. Não eram de briga, nem de mexer com ninguém, mas... qualquer ali tinha a obrigação de saber que ambos, como uma bomba relógio, estavam naturalmente prontos para explodir a qualquer instante.
Zé de Maria havia servido “os quartel”. Outrora, chegou ali vestido na farda, faca de selva à cintura, trajes de combatente, braços e bíceps que pareciam uma mão de pilão. Zé, na farda e no calor dos seus vinte e poucos anos, “bem aparentado”, sentia-se e era o dono da situação. Dizia que não ficou nos quartel porque não quis. Alegou que na sua terra tinha uma festa todo ano, festa da Conceição, que por ali tinha aqueles bailes até o amanhecer do dia, festa de São Gonçalo, festa do Divino, novenas, Levantamento de mastro e que a vida no quartel não lhe permitiria.
Sem farda e no interior, caiu na roça. Seus pais e irmãos aos poucos foram para a cidade e Zé, o caçula, de livre escolha, ficou “como um gato na tapera”. Morando naqueles confins, pelo qual abdicou da vida na cidade, do engajamento e salário do quartel, acabou encontrando, ali pertinho, a sua alma-gêmea, o ROMUALDO, amigos até debaixo d’água”. ROMULADO era outra fera para o trabalho. Fera com fera os dois se uniram e foram trabalhar juntos, ganhando e dividindo. E formavam uma “parelha” em tudo, jamais incomparável, em todos os tempos.
Zé de Maria qual um solitário “gato na tapera”, indo morar na casa de Romualdo, que era, aliás, a casa da mãe deste, Moça de Auta, neta da velha “Processa”, eram estes ali descendentes quilombolas, jogados nas encravas daquele socavão de “Meu Deus”. Zé de Maria e Romualdo, de uma amizade incomum eram tão íntimos que, nas mesas do almoço no trabalho roceiro, em meio a outros tantos, comiam com uma só colher. “Um comia uma colherada e passava a colher para o outro”. Também nas festas e pândegas por onde iam, juntavam quantias iguais e formavam um caixa que pagava todas as despesas. Tudo meio a meio. Ao fim da festa, sem exigência de prestação de contas, o que sobrava era ao final dividido.
E assim tocavam a vida com absoluta igualdade, no trabalho, nos ganhos das empreitas do serviço bruto, na colher da mesa, nos gastos das festas. E até mesmo naquela sala de chão batido em que dormiam na casa de moça de Auta, filha da velha Processa, remanescente quilombola. Abro aqui ligeiro parêntese, para justificar que, há (havia) um costume naquele lugar em que as pessoas costumavam cantar na noite para espairecer, e “desanuviar” naqueles estirões de caminhos. E cantavam cantigas de bumba-boi, cantigas de tambor. Pura brejeirice de velhos costumes.
Era noite quando Romualdo e Zé de Maria caminhavam naquela estradinha solitária, mas com a “lua bonita”, rumo ao agasalho comum. Romualdo convidou Zé para cantar. Zé, vindo da cidade grande, não só não aceitou o convite como considerou que aquilo era “uma besteira”. Romualdo Não se deu por vencido nem imaginava o rombo que provocaria e pôs-se a cantar. Cantar nas alturas, como faziam outros cantadores em semelhante caminhada noturna. Zé de Maria não gostou “nem um pingo” daquilo e no íntimo considerou uma provocação, uma ofensa.
Bem ali, sem Romualdo saber, o paredão daquela intensa amizade começou a rachar. Desmoronar. E seguiu cantando. Zé de Maria enfurecido, qual um carneiro, quando arma-se para uma “cabeçada” ao boi, no pasto, foi o que fez! Deu espaço, rumou feroz, soltou um grito de guerra, e, por trás, deu uma “cabeçada” no Romualdo, jogou-o para cima que caiu estatelado ao chão, Zé montou, imobilizou Romualdo, disse que “era mais homem”, bateu que deixou mole os seus dentes. A cantoria que mal começou, logo acabou. E a amizade e parceria dos dois estavam fatalmente destruída para sempre. Ainda assim, Zé fincou pé na casa de Moça de Auta, mãe do Romualdo. Romualdo, se quis, teve que mudar-se. E mudou-se.
Nas noites, porém, Romualdo só pensava em vingança. Aprendeu com Zé de Maria que soldado para manter acesa a chama do ódio ao inimigo, ingere limão com pólvora, cria coragem e vai pra cima. Romualdo assim o fez. Ainda era madrugada, Romualdo de peixeira pontiaguda e afiada saiu para dar o troco. Num voo, rasgou a porta de palha com a peixeira, invadiu a casa e deu o grito de guerra: “te prepara pra morrer” e... “meteu a faca”. Zé que não se desgrudava nem da sua faca, nem de uma vara de ferrão, quando tentou alcançar a ambos, cadê? Músculos, nervos e tendões, do seu bíceps estavam lacerados! Em sangue! Romualdo deixou o local declarando que “estavam empates”. E saiu dali para tão cedo não mais voltar. E quando voltou encontrou o ex-amigo, aleijado que ainda arrotava um sorriso ao lembrar do episódio.
Jorge de Maria era irmão de Zé de Maria. Valente, garantido, outra bomba pronto para a explosão. Ficou envenenado quando constatou a desgraça do irmão. Consta que humilhou a Zé e até lhe “bateu na cara”, porque “não honrou as calças que veste” e propalava aos quatro ventos que “o dia que encontrasse o Romualdo, o diabo saía da garrafa”. Romualdo mudou-se para outras terras mas sentia-se tentado pelo seu machismo a voltar ao velho quilombo. E não se desgrudava nem da sua peixeira afiada nem de um 38 na cintura. E sabia que naquele lugar tinha um aleijado e o seu irmão que espreitavam vingança.
Era uma tarde. Romualdo caminhava justo naquele mesmo caminho, pouco mais adiante de onde se deu a desgraça com o ex-amigo. E lá se vem Jorge de Maria montado em seu cavalo. Romualdo caminhava em sentido contrário. Nem abeirou, e como num salto de pantera, cortou o cabresto do cavalo que Jorge levava às mãos. Era um desaforo era um grito de morte! E vociferou “te mexe, que tu morre agora”.
Jorge, valente de origem, que vivia caçando a vingança do irmão, agora era igualmente humilhado. E então foi-se à casa de Moça, a mãe de Romualdo, a filha da quilombola e velha Processa e... “chorou como criança”. Chorou de ódio; ódio de sangue; ódio de morte. Dizia em prantos que “viu Romualdo criança, menino”, que o teve em seus braços e agora, ali, amargava a humilhação... E Romualdo mais uma vez desterrou-se pelo mundo, sabendo que ali deixou dois irmãos, seus inimigos. E agora que ambos faleceram, Romualdo volta quieto e envelhecido ao seu lugar. Mas não abandona a faca da cintura. Isso não!
Edição Nº 15515
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