“QUALHIRAGEM”

Rola naquele meu chão da Baixada a lenda do “Poção” que sempre se espalhou pelas mais idiotas versões. Numa delas vem um avião lá em cima, na altura e ronca: hoooooooooonnn, mas quando é na vez de passar sobre o “pução”, que é um lago da cidade, aí o avião desmunheca: hin-hin-hin-hin-hin. Diferente não é a lancha. Vem de longe e ronca: hoooooooooonnn e quando vai chegando perto “poção”, que é a cidade, cai de quatro e hiiiiiiiiiiiiiiinnn. E as versões se multiplicam e se perpetuam, cada um conta como quer para no final arrematar: Ali a qualhiragem é grande!!! E haja gozação, zombaria, sacanagem.

De minha parte nunca-nunca levei isso a sério, sempre levei “na esportiva”, mas casos existem em que os sentimentos bairristas encaram isso como um agravo, uma ofensa e  contra-atacam. Partem pra cima, brigam, puxam, faca resolvem na porrada e deixam o ofensor quietinho para nunca mais se arremeter a tamanho despautério e provocação. Registra-se, entre outras, o caso de um deles em que o “gozador”, no ato e na hora, perdeu só três dentes como lição para nunca mais se dar ao desplante da repetição. E outros que vão em cima do sujeito e desafiam: repete, repete. E o bonito emudece.

Hoje não - todo o mundo civilizado, com TV para todo o lado, parabólicas espalhadas, carro e moto cruzando-se por todos os quadrantes, informações, conhecimento, vida moderna, internet e aí ninguém puxa faca nem “mete bogue” por causa da velha ofensa mas... ainda assim é melhor não cutucar o maribondo-de-fogo com vara curta, que é para não começar tudo de novo.

Aliás, que naquele meu chão baixadeiro com esse “poção” instituído pela rádio-pião e pelo disse-que-disse, por mais que tenham tentado fazer crer que ali a qualhiragem é grande, nem é nem nunca foi tanto assim. Quer dizer... só um ou outro, até porque isso é prática histórica, desde o princípio da humanidade e desde que o mundo é mundo, como sustentam por aí – principalmente nos últimos tempos em que a qualhiragem (assim como a bandidagem) cresce e multiplica-se a cada instante por todos os lugares.

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Aquele meu chão da baixada, além de alguns poucos e entre enrustidos e assumidos, tinha lá o MANOEL JOÃO. Manoel João era um sujeito meio alto, “brancarano”, meio magro, voz afetada, declarante e declarada. Era um “qualhira” de berço, de origem, sem manipulação e sem as desculpas de “coleguinhas”, “abuso”, “assédio” ou influência  da TV ou dos transgênicos até porque nem rádio não tinha por ali. E então MANOEL João já nasceu pronto. Pronto para cumprir o seu destino.

Pobre, paupérrimo, Manoel João morava num pequeno subúrbio à beira-centro da cidade que saía para a beira-campo. Morava sozinho num casebre de palha e chão batido e tinha como ofício fosse “bater rede” (ajudar a fazer rede) ou lavar roupas – tarefas tipicamente femininas naquele lugar. Usava camisas em mangas cavadas e outras por vezes amarradas à cintura – cujo vestuário denunciava os seus trejeitos. E vivia na dele e não bulia com seu ninguém. Mas se chamassem-no de MANOEL JOÃO FATEIRO aí... sai debaixo! Olha o veneno! Corre que o bicho pega! Manoel João virava uma fera diante do apelido que não suportava.

Naquela época, a qualhiragem era apedrejada; os moleques provocavam abertamente. “Atentavam”, abusavam ensandecidos. Punham-se em grupos e chacoalhavam quando o qualhira passava. Hai, hai, psiu-psiu, jogavam pilhérias, “fateiro” pra cá, “fateiro” pra lá, aí multiplicava-se a encrenca com o coitado reagindo ao desvario, tresloucado e ensandecido. Muitas pessoas fechavam suas portas, esconjuravam. Jogavam-se pedras. Era terrível. Manoel João reagia com insultos pesados, palavras impublicáveis e gestos obscenos. Era um ato de ignóbil retrocesso da civilidade - é o quanto hoje interpreto. E quer ver a molecada ir para a porrada era só chamar o outro de “Manoel João”.

Certa feita de passagem pela rua, lá vai MANOEL JOÃO. O sujeito caminhava ao lado de duas mulheres, companheiras de serviço. Aí a molecagem surgiu do nada e passou a bradar-lhe pelo apedido, foi quando vi aquela figura, exasperada, odienta, “enlouquecida”, que gritava impropérios, que revirava os olhos e que qual uma brasa viva (como na lenda dos cavaleiros do Arizona), punha-se a zanzar em meio à molecada, ora querendo pegar um ora querendo pegar outro, espalhando o fogo do ódio por todos os lados. Foi a cena que me marcou ali no meio da rua. E nunca mais vi Manoel João e nunca tive notícia daquele homem humilhado e achincalhado  por natureza. Por sua natureza.

Li, certa feita, um depoimento-reportagem sobre CAZUZA, que morreu contaminado pela AIDS, onde dizia que, no auge da sua doença, era como se mil cachorros estivessem em seu interior a estripá-lo com tantas dores espasmódicas que sofria. Mais tarde ouvi dizer que Manoel João morreu gritando, exasperado, contorcendo-se em dores, numa situação que despertou o cochicho e o temor de quantos à sua volta. E então lembrei-me de CAZUZA e dos cachorros que o estripavam.

Hoje eu parei no tempo, não para expor a pessoa e o personagem, mas para lembrá-lo como ser humano que com a sua cruz viveu a “travessia” inevitável que é a vida sobre a face do chão, este nosso “vale de lágrimas” em que cada um paga o seu preço, embora muitas vezes disfarçamos – seja com os cabelos pintados, com o celular ao ouvido, com a roupa de marca, com o corpo “sarado”, com os títulos que ostentam, com o carrão em vidro-fumê, com os tapinhas que levam ou dão nas costas do outros ou com o dinheiro fácil que lhe caiu... quase do nada... E depois ainda arrotam: “Ralei muito, para chegar até aqui”.