Já me disseram, entre outros adjetivos, que os meus textos têm cara de novela das sete. Não me regozijei nem me iludi – pois que disso eu já desconfiava. Então você, meu caro leitor, é quem vai avaliar se isto aqui “tem cara de novela das sete” (uma ficção) ou... se reflete a realidade.

MORTE E VIDA, OZEBINHA

Diz o ditério que “cada terra tem seu uso / cada povo tem o seu fuso”. De fato: cada povo sem seu fuso. Volto então ao lugar de onde eu venho, nos idos da minha infância. É daí a noção de tempo e espaço em que se revela VIDA E MORTE, OZEBINHA, no que de mais a mais outros tantos eram assim. MORREU OZEBINHA, também conhecida por Ozebia de Zeca. Ozebinha era uma mulher de pouca estatura, magricela, fanhosa, pobre-pobre de marré-marré-marré. Ozebinha  morava naquele coitado casebre de palha. Roceira de roças pequenas e  “moradeira” em terra alheia, morava quase à beira do caminho, numa breve encruzilhada, ao fim de um “povoado” de quatro outras moradias. Não tinha marido e criou dois filhos sozinha: Raimundinho e Zefinha.
Ali, naquele lugar, quando alguém morre em circunstância que não vem de um prolongamento ao fundo da rede, logo se diz que “morreu do coração”. Era noite,  tarde da noite, quando Ozebinha deu os últimos “arquejos”. Começou com uma dor no peito que se lhe tomou o fôlego, seguido de forte dor de cabeça. Ainda deu dois ais, em seguida calou-se inerte, para sempre. Ainda era madrugada e Raimundinho, seu filho, saiu pelas casas avisando a vizinhança. “Hei de casa, hei de casa”. E era recebido pelo latido e avanço dos cachorros. “Cala boca”, ralhava o dono da casa, impondo recolha aos cachorros. Raimundinho lá fora e a casa fechada: “Eu vim dizer que mamãe morreu esta noite”. Morreu?  Morreu de quê, Raimundinho? Morreu do coração, responde.
Segue ali uma maratona que vai esticar-se por toda aquela redondeza, com o filho anunciando a morte da mãe, no sentido de que as pessoas compareçam ao velório. E nessa dura caminhada, sai também à procura de quem se lhe faça o caixão – um encargo penoso e adverso como de resto penoso e adverso é(ra) tudo ali. Vai então bater à porta de Zé Borges, um  velho “carapina” do lugar. Hei de casa, anuncia-se. Hei de fora, alguém responde. Tô aqui procurando seu Zé Borges. Sou Raimundinho de Ozebinha, minha mãe morreu “esta” noite. Zé Borges tá viajando, só chega semana que entra, diz a mulher.
Raimundinho, ao desespero, põe a mão na cabeça, contorce-se, range os dentes. Ele sabe que junto ao corpo de sua mãe ficou só Zefinha – sua irmã. Sabe também que em casa só tem a água do pote e a graça de Deus, mais nada. Nem um pó de café, nem uma temperada de açúcar. Tudo isso se lhe vem na mente. Mas agora é “pé pra frente”, então ele toca para outra distância, à procura de outro “carapina”, Macico Sibuí. Macico é um jovem mexilhão na arte. Quase não tem ferramentas, senão um velho serrote cego, uma enxó das antigas, um formão e uma plaina, tudo  desmazelado. Ele sabe que “quem não tem farinha, “cruêra” serve”, então ele vai dar com os costados na casa de Macico Sibuí. Hei de casa! Hei de fora, responde alguém lá de dentro. Cadê o seu Maciço? Tô precisando dele. Minha mãe morreu “esta noite”. Vixe Maria! Sobressalta-se a mulher de Macico. E continua: Macico tá ali pro mato, fazendo um “preciso”. Então ele espera... até que enfim lá vem Macico Sibuí, acostumado a eventuais e semelhantes empreitadas.
Conversam e se entendem. Macico fará o caixão, mas logo avisa: não tem prego, não tem tábua, senão a boa vontade que coloca à disposição. Aliás que naquele meu lugar, “na hora da morte”, todo o mundo leva isso a sério, todo o mundo é solidário. Raimundinho continua a maratona, mas agora tem outro desafio pela frente: conseguir as tábuas para o caixão. No sobe e desce da peleja consegue tábuas emprestadas que pagará na colheita que espera do seu arroz. Agora são onze do dia. Macico Sibuí já está fazendo o caixão. As vizinhas ajudam Zefinha a cuidar do corpo, banhar, vestir. Também já apareceu um café com açúcar. A redondeza já cuidou disso.
Raimundinho sabe que a caminho do enterro tem que rolar uma pinga para os carregadores do caixão. Tá danado! Raimundinho não tem uma banda! Mas como a solidariedade ali aflora “na hora da morte”, então a pinga aparece no abafado. Para enterrar a defunta, tem duas opções naquele meio de mundo. Cemitério de São Sebastião ou Cemitério de Santa Rosa. Vai para o Santa Rosa, depois de Nova Aurora, depois de Sertãozinho, depois de Curvão, Belas Águas, São Benedito, Estrada Real. O  improvisado caixão é içado em duas cordas-de-rede e pendurado  no varal que dois homens carregam nos ombros, em revezamento. No caminho, é aquele falatório, gente suada e sem camisa e pinga rolando. Na bebedeira, uns desatinados dão o grito: “cerca lá, ôh...” O outro responde “Cerca lá, mãe das almas”. Apolônio de Filipão interfere: Gente, isto aqui é um intêrro, vamos arrispeitá. A gritaria se sucede e a pinga vai secando.
- Agora são “três e pouca” da tarde. Estão todos no cemitério de Santa Rosa. No improviso e no suor cavam a “cova”, eis que para isso já levaram patacho sacho e enxada. Raimundinho ali desolado, cenho fechado, nem teve tempo de chorar - é linha de frente para tudo. Ele sabe que, como filho, é quem “puxa o cordão”, quem toma a linha de frente. A tarde vai escurecendo e as pessoas estão voltando, exaustos de pés no chão. E, no vapor da pinga, ao escuro, uns ainda se arremetem: “Cerca lá ôôôh...” Outros respondem: “cerca lá mãe das almas”. Daqui a sete dias tem “via sáca”, um ritual ao comando do rezador. Terá debaixo da mesa um prato de água que é “para o isprito da morta”. E Raimundinho e Zefinha já estarão vestidos de preto,  em “luto fechado”.