“CADA QUAL PARA O QUE NASCE...”
 
A vida me ensina que “cada qual para o que nasce...”. Faz anos, ali pela Rua Godofredo Viana, conheci uma figura.  Embora conhecendo-o por tantos anos e mais anos, nem mesmo sabia do seu nome. A vida tem dessas coisas. E só recentemente vim a saber o seu nome: FERNANDO!
Fernando, a esse tempo, exercia uma declarada vocação para “guarda de trânsito”. Vestia-se regularmente, postava-se numa esquina a que escolhesse e dava as ordens no trânsito. Mandava parar, mandava passar. Interrompia. Determinava. Sempre de apito à boca e executando os silvos da ocasião e convicto em suas assertivas pessoais, dava as ordens do terreiro, mandava e desmandava na esquina que escolhesse. Um autêntico “guarda de trânsito”!
Quiçá a tarefa não lhe rendeu os dividendos esperados no âmbito de sua satisfação pessoal e o rapaz abandonou o ofício. Esclareça-se que esse voluntário não pedia nem ganhava dinheiro por isso. Mais tarde, passei a vê-lo vendendo detergente caseiro em uma bicicleta cargueira. Ficou pouco tempo na ocupação. Agora sua nova onda de ação está serviço da “propaganda volante”.
Imagino que o nosso personagem, via de algum benefício da previdência, juntou uma grana, comprou caixa de som adaptada, microfone e tudo o mais e sobre uma inseparável bicicleta-cargueira, roda a cidade, como numa simulação de propaganda volante com o microfone postado para quando lhe der e vier dele fazer uso, o que não raro cumprimenta pessoas ou acrescenta alguma informação no quanto veicula.
Por vezes, anda em silêncio. De costume toca música a meia altura do inevitável Roberto. E sempre que tem um festejo católico, Fernando está a colaborar com a efeméride. Já com o CD gravado, ele segue anunciando a festa da Igreja e volta e meia usa o microfone para “bombar” mais ainda aquela mídia de publicidade. Sua voz se faz um tanto embaralhada, confusa, mas ele não está nem aí: vai levando, vai tocando e vai fazendo o seu “comercial”.
Desconfio que num determinado ponto da cidade, o nosso personagem tem um amor proibido, do tipo mal resolvido que o cara guarda só consigo. Ele chega com a sua cargueira, para e põe uma música, sempre falando de amor, exibindo sentimentos. Roberto, como sempre. Depois de algum tempo, satisfeito e certo de que sua mensagem foi transmitida, ele vai embora, naturalmente, sem dizer palavra, sem exercer gestos e sem nunca definir onde vive aquela suposta musa que mexe com a sua cabeça, onde para por perto.
Certa feita, ainda pela manhã, final de semana, Fernando estava “possuído” de um sentimento lacerante, alucinante. Tive a impressão de que a paixão gritava ao seu peito, o cara estava simplesmente DEMAIS! Então, pouco antes daquele ponto crucial, o rapaz estacionou a sua cargueira e tocou uma canção de Roberto; uma música que ecoava e gritava na distância: “Eu tenho tanto pra lhe falar/Mas com palavras não sei dizer/Como é grande o meu amor por você// E não há nada pra comparar/Para poder lhe explicar/Como é grande o meu amor por você//Nem mesmo o céu nem as estrelas/ Nem mesmo o mar e o infinito/ Nada é maior que o meu amor/Nem mais bonito/ Me desespero a procurar/ Alguma forma de lhe falar/Como é grande o meu amor por você//Nunca se esqueça, nem um segundo/Que eu tenho o amor maior do mundo/Como é grande o meu amor por você...
Saiu dali e logo adiante naquele “ponto g”, à beira desse imaginário amor proibido, novamente, disparou a canção: “Eu tenho tanto pra lhe falar/Mas com palavras não sei dizer/Como é grande o meu amor por você. E sem dizer palavras, como sempre faz, seguiu o seu caminho ao silêncio dos seus sentimentos. E foi embora.
Dia desses, voltei a ver o rapaz, novamente e como sempre com a sua cargueira, microfone postado, som ligado. Roberto cantava. Ele estava na Praça de Fátima, pouco ao lado da igreja. Novamente parecia que estava “possuído”, melhor dizendo: estava com tudo, com a corda solta, viajando nas estrelas. Tocava a música e o sujeito executava gestos, atitudes, meneios e volta e meia emendava com sua voz, completando a canção. Como se estivesse a dublar, numa sessão de “karaokê”.
E pisava e machucava e se mexia e contornava. E volta e meia também cantava. Até parece que a felicidade e o contentamento e algo mais também esbanjava. Era o seu dia! E mais que isso: uma realização pessoal que ali lhe alimentava, a céu aberto, plena satisfação e alegria, uma êxtase como num momento especial na sua vida! Saí dali e a mim me dizia, olhando naquela face: ... ...  “cada qual para o que nasce...”
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P.S. quando escrevia este texto, lembrei-me de que, faz dias, li numa lápide de um “professor e escritor” como assim se define, em que repetiu por 19 vezes o nome do seu homenageado num texto fúnebre de 30 linhas. Tive medo de cair em tentação, por isso os adjetivos que os dei ao meu personagem: ora “o cara”, “o rapaz”, ora “o personagem”, “uma figura” - tudo para não cair em tentação.