CAMBISTAS...
Era 1.973. Isto aqui era um “garimpo” e tanto. Um poeirão nos ares; explosão de crescimento e progresso. Serrarias, usinas, arroz do Trecho Seco, da Cida, de tudo enquanto é canto. Toras de madeira misturadas com gente sobre o caminhão madeireiro. Dinheiro rolando, gente chegando e todo mundo ganhando. A pistoleirada tinha nome, sobrenome, CPF e endereço. Uns que vestiam-se de negro e usavam botas, cinto e chapéu de caubói. Trezoitão? Era só apalpar.
A esse tempo Loterias Estadual e Federal, carnê do Baú e o Jogo do Bicho, assim como taxistas, faziam a festa. A Loteria Estadual, como num jogo de “cartas marcadas”, de quando em vez dava carros e mais carros por aqui. “Sorte tem quem acredita nela”. A Loteria Federal também vendia-se por aqui. E assim a Imperosa vivia os seus dias, a céu aberto de grileiros e pistoleiros e uns tantos “descuideiros” que simulavam encontrar pacote de dinheiro mas sem os estupradores e assaltantes banais dos nossos dias atuais. Uma maconhazinha de nada e aquilo era um deus-nos-acuda, um estardalhaço!
É daquele velho tempo que conheço uma figura, um CAMBISTA. “Brancarano”, boa estatura, vestido no linho, óculos na cara, um tipo na dele e que vivia tão só e exclusivamente da venda de bilhetes de loteria. A Loteria Estadual, imagino, era a sua fonte principal. Na retaguarda os bilhetes da Loteria Federal e para completar o caldo, “pules” do jogo do bicho e um carnê do Baú, aqui e ali.
Nunca e até hoje tivemos nem um bom dia, nem um boa tarde, embora tenhamos nos cruzado por um milhão de vezes. A vida tem dessas coisas. Mas esse homem sempre me representou um ícone, uma fidelidade, uma perseverança nessa sua lida. Sempre com uma surrada pasta, ora pendurada à mão, ora debaixo do braço, ali carrega a sua sina, o seu destino, o seu trabalho, seu meio de vida.
Tantos anos se passaram, a Loteria Estadual, que dava carros e mais carros, acabou. Os bilhetes da Loteria Federal – se é que ainda existem, e dos quais quase ninguém mais fala – estão a cargo das próprias lojas de loterias, ao passo que o jogo do bicho, proibido no papel, mas resistente a vida toda, agoniza em seu próprio caixão. Ainda assim aquele homem, “brancarano”, vive dos ossos do velho ofício. Diariamente está no velho batente com a pasta debaixo do braço, tecendo o seu tecido.
Volta e meia eu o encontro pelas ruas da vida. E, como sempre, sem ao menos um bom dia ou um boa tarde. Dura vida, essa  vida. Indiferente essa vida. Mas a vida tem dessas coisas. Muitas das vezes o vejo com uma ou outra sacola como se carregue algum “de comer”. Porque não sei, não sei o porquê, mas tenho a impressão de que quando carrega aquelas sacolas do “de comer”, até parece que ele tem um traço de felicidade, de contentamento. Fiel, vai direto para sua casa.
E nem caminha tanto, vejo. Seu ponto de guerra é ali na Praça de Fátima e adjacências e mora ali pras bandas da beira rio, na mesma direção. Digamos assim: na beira de casa. Mas o que ele faz mesmo, disso não sei, não vejo. Loteria Estadual acabou, Loteria Federal nem se fala e jogo do bicho, quem é mesmo que faz uma aposta de dez reais? Tendo “dezão” vai mesmo é para o “qualquer coisa DA SORTE”, cujo bilhete nem sei se ele vende. Quem sabe?!
Faz anos, esse CAMBISTA vendeu a sua casa-de-morada, na beira-centro da cidade. E ele que não é bobo nem nada, comprou logo uma outra, bem ali mais adiante, coisa de poucos metros e... naturalmente... embolsou a bolada restante para os padrões da época. Mas aí veio um cara que tem a minha cara e que se mete a “questionador do social” e escreveu um tema de solidariedade sobre esse cambista e a venda de sua morada, onde dizia: “... a casa agora tem um novo dono...”
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Um outro cambista que viveu por aqui do semelhante ofício, em semelhantes circunstâncias, bem como da mesma época das vacas gordas, esse jactanciava-se de ter vindo da Ilha de São Luís”. Também andava em tempo inteiro com uma pasta debaixo do braço. Morava para as bandas do curtume. E a gente sempre que se encontrava era papo vai e papo vem, entremeado a um sorriso simples e espontâneo a que ele sempre esbanjava. Desapareceu. Não sei o que dele foi feito.
Outro CAMBISTA tradicional por aqui era o CR também “brancarano”, meio encurvado, humilde, solícito, com sua “capanga” debaixo do braço, também vendia bilhetes da Estadual e da Federal. Tolerante, simplista, fazia ponto dentro do banco. Casado, família definida, os linguarudos tiravam sarro da vida conjugal daquele cambista. E CR manso, nem aí... não se importava e continuava dentro do banco, fazendo a praça e a vida com os seus bilhetes de loteria. Fez escola e seu filho tornou-se cambista. Menino, baixinho, cabeçudo, “zambeta”, andava com um monte de bilhete nas mãos. Quando eu o encontrava, fazia-lhe a exortação: “... Mas não perde o olho da escola”. Tornou-se “legiferante e ruralista”, mudou de paragem e ganha a vida sem as dificuldades do pai que há muito se foi.
Essa coisa de CAMBISTA até parece que exerce um “feitiço” nas rodas do quotidiano. Tem um deles que vende bilhetes de jogo do bicho, jeito de quem vive na pindaíba, dependurado, parece um bezerro enjeitado. Aquele outro que andava por aí, pra cima e pra baixo, também desapareceu. Agora aparece mais um.  Pasta debaixo do braço das sete da manhã até às oito, nove da noite. Acho que ele vende um tal de “qualquer COISA DA SORTE”. Amuleto de qualquer cambista, ele também tem uma pasta. Parece que lá dentro tem um milhão de papéis e outras coisas. Ali sim, um “pecado dependurado” que ele carrega um tanto mal ajambrado pra cima e pra baixo. Pensando em promover a sua “qualidade de vida”, ofereci e ele aceitou: dei-lhe uma pasta.