MERCADINHO, “PÉ INCHADO” E PESADELO

Era ainda cedo da manhã de um dia de sol quando fui ao Mercadinho - porque levantar cedo e cuidar cedo dos deveres é uma rotina que carrego de criança até aqui, de segunda a domingo; de domingo a segunda. Afinal como diz um velha lição de que faço princípio de vida: “cada qual para o que nasce, cada qual para o que nasceu”. Esse mesmo “levantar cedo” que me guiou a ter MÃOS LIMPAS.
Fui ao Mercadinho, jungido pelos ossos do ofício, à procura de testemunhas, em face de um crime que ocorreu em suas dependências, faz anos e que agora explode como um vulcão. Foi crime que envolveu morador de rua, prestes a julgamento. E quase todas essas minhas infelizes testemunhas são todas moradoras de rua, alcoólatras, desocupados.
De início fui bater num determinado ponto, algo como “no meio do oceano” - isso porque faz anos, quando o fato aconteceu, foi exatamente nesse lugar que há quatro anos, por acaso, encontrei uma “testemunha”. E, como não tenho o seu endereço, fui, desse nada, parar naquele lugar. Logo de chegada, ao iniciar a conversa em busca de informações, um estranho, do nada, salta do meio da rua no meio da conversa e fica dentro. Olha a minha saia justa! Tenho dificuldades em dividir minhas conversas com intrusos. Uma questão de foro íntimo, mesmo sabendo que ali eu estava no MERCADINHO.
Soube ali que a testemunha da minha procura havia caído no mundo, escafedeu-se, mas aquela senhora, à guisa de ajuda, indicou-me um beco ou um “bar dos pé inchado”, onde eu supostamente poderia encontrar outras testemunhas que os procurava. Olha o drama! Saí na direção! Olhava como perdido numa aldeia de selvagens. Logo vou vendo os “pé inchado”, tudo cara de cachaça, passos lentos, cara inchada, todos em andrajos, malvestidos, deles que visivelmente dormiram ao chão. Outros que nem davam conta de falar. Outros que lembravam fantasmas de si mesmos, gente que mal dava conta de andar. Misérias do social, ali, espalhadas por todos os lados. Quase todos “vigiando carro”. Caótico e terrível era o ambiente em meio ao monte dos “pé inchado”.
Eu que me autoapresento como “o olhar do pássaro sobre o galho”, em seguida dou de cara com uma mulher de mediana idade, sentada ao chão, perna estirada sobre o passeio, risco de ser pisada, ligeiro aspecto de quem “já foi”. Toda latanhada, no rosto, no braço, nas pernas, no corpo. Logo percebi que a mulher, embora com roupas medianas, exibia-se mais nua do que vestida – o que aliás não diverge muito das moçoilas como vemos diariamente pelas ruas da vida.
Aquela mulher sentada ao chão, de olhos fortemente avermelhados, aspecto de quem dormiu ao chão, de quem mal acabara de acordar, ela mesma que ali estava para mais um dia da sua sina e para pedir um realzinho de um e de outro em meio aos seus colegas de infortúnio, outros tantos “pé inchado”. Vendo aquela mulher já fiquei desconsertado. Eu que estava à procura do “bar dos pé inchado”, à caça de testemunhas moradores de rua e vezeiros do local, diante daquela mulher já me perdi em meus objetivos. Afinal àquela altura, comigo desnorteado, encontrar ou não os tais “pé inchado” testemunhas e moradores de rua, era tudo igual à mesma coisa.
E todo esse drama ali se passa em instantes. Então resolvo voltar, sair dali, livrar-me daquela selva terrível. Então tive a sensação de um pesadelo. Pesadelo do social. E quando vou voltando, novamente “o olhar do pássaro sobre o galho”, insiste em perceber aquela mulher. Ela também percebe o “olhar do pássaro” em sua direção e logo lança a sua lança: “me dá um real aí”. Olha o drama! Não tinha um tostão furado ao bolso. Em meio a esses “pé  inchado” que vivem “vigiando carro”, também percebi que havia outro em andrajos, rosto fechado em barba, que mal dava conta de falar, também sentado ao chão, amassando e revirando duas moedas com uma das mãos. O seu tesouro de faz-de-conta. Aquilo me revelou o fim da linha, a “sarjeta” do alcoolismo como se prega por aí.
Nesse pesadelo, segui em frente. Meus planos de encontrar os testemunhas “pé inchado” tinham-se ido pelos ares mas aí... um outro “pé inchado”, também “vigia de carro”, com características melhores, mais sóbrio, então resolvi lhe perguntar. Foi aí que aquele... aquele  sentado ao chão e que amassava as moedas com a mão que poucos antes me parecia mais morto do que vivo, então ele vendo que eu-estranho ali buscava informações, logo num segundo saltou e estava dentro da conversa. Dentro da conversa que não chegou nem mesmo a se iniciar.
Nesse pesadelo, saí às pressas e não mais me interessei pela caça das testemunhas “pé inchado”, eles que sem nome e com o rosto desfigurado, vivem à sombra dos seus apelidos e dormem ao chão nas noites sobre o papelão e “vigiam carro” ao dia e fazem da CACHAÇA o suposto alento para a miséria que os toma de conta.
E, como quem irrompe, desperta, acorda e livra-se de um pesadelo saí dali, porém com a minha mente vergastada, espancada, ruminando com aquela mulher sentada ao chão mais nua do que vestida, bêbada, toda latanhada, olhos avermelhados, gritando em mim por “um real”  e com aqueles dois outros que do nada e intrusos investiam-se dentro da conversa alheia.
- Já tem dias que o pesadelo aconteceu mas em realidade, em realidade, o pesadelo sobre todas aquelas nuances do social, no MERCADINHO, ainda fazem o fantasma do social e da realidade que atormenta este...“o olhar do pássaro sobre o galho”.