DONA ROSA (e suas carnes)

O bairro do João Paulo, em São Luís, até parece que já nasceu estigmatizado, vítima do infortúnio e dos atropelos do social. Era, então, um bairro de periferia “afastada”, onde ali construiu-se um quartel militar, tiro de guerra, curtume, um distrito policial e, para aliviar, também criou-se ali um mercado público. O João Paulo, por sua população e seu comércio, tornou-se um bairro “independente”, como diziam.
No início do século passado, com a implantação dos serviços de bondes elétricos na capital e tendo o João Paulo, então, como uma de suas últimas fronteiras urbanas, construiu-se ali um “rodo”, que era para fazer a curva de volta dos tais bondes. Era ali uma espécie de “para final”, cujo movimento dos bondes ia até as dez da noite e, em apoio ao povo, construiu-se ali um “abrigo” composto de lanches, bebericagens, jogo de bicho e algo mais.
Na noite, local iluminado com movimento de bondes e de gente, aquilo fazia lembrar aquelas luminárias que se instalavam em comércios noturnos e que se prestava para atrair e fisgar mariposas e outros insetos. Lembra? E assim o “rodo” iluminado atraía a mulherada de meio mundo e quatro bandas da lua daquele João Paulo de todos os cortiços, fornicações e mulherada em volta. Era, então, uma “central” de prostitutas rufiões proxenetas, gigolôs e entrujados que ali se misturavam em busca de sexo pago. Um negócio e tanto que movimentava a roda e o rodo. De tal sorte, enfim, que “rodo”, João Paulo, cortiço, putaria e prostituição eram tudo igual à mesma coisa.
O rodo cresceu tanto no lendário popular que tinha até “música” própria para suas fornicações e apelos sexuais. Eu, um sobrevivente do pós-rodo mas quando ainda assim o João Paulo era uma enseada de tudo a tudo inclusive de casas de prostíbulo cortiços, cabarés, lupanares, chatôs e outras do ramo, ainda me lembro da “letra” daquela composição.
Nesse dito João Paulo, nos cafundós de uma beirada chamada “Rua da Vala”, com esgoto a céu aberto, depois oficialmente “Rua da Malária”, morava Seu MaTê e sua tribo. Dava um time de futebol e ainda sobrava uns dois para a reserva. Era uma escadinha e cada vez mais chegando mais. Seu MaTê, além de vigia do Grande Cemitério na noite, era carroceiro durante o dia. Armado de um facão em tempo integral, Seu MaTê não arredava nem para o trem. Não era de beber mas... vigia no cemitério à noite que já viu até “pantarma” por lá e carroceiro barra-pesada durante o dia, era língua solta, insultuoso. E aí, meu, ninguém é de ferro. E com duas na testa, se ficasse invocado, facão à disposição, sozinho queria fechar o João Paulo inteirinho.
Com a mulher Dona-Zê, parideira de filhas mulheres, COTINHA era a primogênita. Estudante em colégio particular, “saia plissada” meio-curta era uma formosura, linda inteira e “retada” toda! E, nessa onda quem é que não deseja?! JusT era o namorado morto-apaixonado por COTINHA. Mas a mãe não aprovava e fazia guerra. JusT era um simples ourives, queria porque queria casar de papel passado, levava a sério o namoro, mas Dona-Zê não lhe dava crédito em razão da sua “baixa condição”. COTINHA ficava dividida entre as intenções e os apelos do rapaz e a oposição cerrada da mãe. Nesse clima o romance perdeu fôlego, foi-se pelos ares.
Pronto, COTINHA fora de JusT, estava livre para voar! E... não deu outra... voou. Assediada, desejada, redesenhada na mente da galera, quando menos se esperou COTINHA meteu o pé na jaca e “deu com os burros n’água”. Não era mais moça. O mundo caiu sobre sua porta e da língua solta e facão do lado do Seu EmeT e da “oposicionista” dona Zê. Cotinha logo foi “banida dos estudos”, não frequentou mais escola e... seus pais enfarruscaram-se e metiam-lhe a língua em tempo inteiro. Cotinha, então, caiu no mundo e nunca mais voltou àquele chão. Nunca mais!
Parida e de resguardo, contratou-se DONA ROSA para os serviços da tribo. Dona Rosa era mulher despachadona, disposta, faladeira, um tipo cospe-fogo que também morava naqueles arrabaldes da putaria do João Paulo. Dona Rosa tinha, porém, um álibi: uma lindíssima filha, BIBI. Gatona, inteiraça, lábios desenhados. BIBI, filha e cria daquele antro chamado João Paulo, cedo-cedo também deu com os burros n’água e vivia em “capa de moça”. Dona Rosa descobriu a treita de filha e virou uma féééééra!
Então, tudo para Dona Rosa era que Cotinha “deu as carnes”, que a filha dos outros “deu as carnes”; que fulana vivia em capa de moça mas... “já deu as carnes”. E assim Dona Rosa vivia dando com a língua em cima de todo o mundo sempre com o pejo e a maldição de que... “já deu as carnes”. E não estava nem aí para seu ninguém. Não estava aí, vírgula, qual um Lampião que dobrava-se ao simples nome de “Padim Cirço Rumão” do Juazeiro, Dona Rosa dobrava-se genuflexa à simples honra do “SALRGENTO DOS QUARTEL”. Aquela nomeação era o seu símbolo, sua honra, sua estrela maior.
E então naquelas tardes, naquele bairro João-Paulino de todos os quartos de rapariga; de todas as espeluncas e de todas as prostituições, lá se vem o “Salrgento dos Quartel”, por vezes na sua farda verde-oliva, por vezes à paisana, na cara limpa e na maior moral, com aquela coroa do lado. Ia direto para um dublê de casa-de-família mas, no fundo, um chatô, uma espécie de motel dos quintos, ainda dos tempos do sabonete reusado, bacia e da toalhinha. A dona do butim derretia-se diante do seu mais ilustre freguês. Era como se tivesse o alvará dos alvarás. E então todas as honras e todas as mesuras e todos os “quindins” ao seu herói. Seu mais honrado cliente.
E dona Rosa, que derretia-se entregue diante daquela “otoridade” que era o “salrgento dos quartel”, a este cumprimentava com as honras e ao estilo da mais ilibada e serena cidadã. Mas quando saía dali metia a língua nas filhas dos outros: “Fulana, vive em capa de moça e não é mais moça, tá dando as carnes”, Beltrana tá dando as carnes. Enquanto isso, Dona Rosa fazia que ignorava que a sua BIBI linda e inteira era a primeira que, “em capa de moça”, também estava dando as carnes. E assim, de carne em carne, vivia o João Paulo, o rodo e a língua de Dona Rosa.