UM HOMEM CHAMADO TIMBÁ

Sempre que vou ao meu chão baixadeiro, na terra que me viu nascer, procuro identificar as pessoas – muitas das quais nem conheço nem lembro mais, tal o tempo e a distância que nos separa. E, qual fazia o meu pai, também pergunto: Filho de quem? Gente de quem? Parente de quem?
Era noite aquela noite e a “boiada” - o bumba-boi – troava quente e pesado na casa do  meu amigo de infância, Antônio de Leôncio. A “brincadeira de bumba-boi” naquele meu rincão é animada à matraca e, na percussão, dois ou três “tambor onça“ mais um ou dois “tambor grande”. Leonardo, um negão bom de pinga, um tipo roceiro desocupado, rouba a cena no “cordão” da boiada com o seu grandiloquente tambor-grande que ele batuca a noite inteira, quase arrastando-o ao chão. E nesse sobe e desce e nesse vai-e-vem e nesse pancadão, uma pinguinha de vem quando, Leonardo rouba a cena e amanhece o dia no batuque, até porque a brincadeira, como da tradição, vai até o amanhecer do dia.
Tenho observado que a brincadeira de boi por ali, em muitas ocasiões, é “qual um coração de mãe – sempre cabe mais um”. Democrática e sem barreiras, os simpatizantes e matraqueiros e batuqueiros da externa, que não pertencem propriamente ao grupo, vão se aproximando do “cordão”, vão batucando, vão ficando e... ficam. E ficam a noite inteira. Ninguém lhes expulsa, ninguém manda-o embora, então o sujeito participa do cordão, da brincadeira e de quebra ainda pega uma “boia” junto com os demais, até porque ninguém é de ferro.
Enquanto o cordão ou a “roda” se movimenta a noite inteira, vejo que ali está um homem, um negão, forte, corpulento, alquebrado, envelhecido pelo tempo. Estático sobre uma cadeira de ferro, maneja, batuca e solfeja um exótico instrumento naquele território de “boiada”. Exótico porque, enquanto todos os instrumentos vêm da feitura do fundo de quintal, quais as matracas, os “tambor onça” e aquele tambor grande do Leonardo, o instrumento daquele homem vem da indústria convencional, algo incomum e fora de série e quase jamais visto naquela brincadeira: UM BOTIJÃO DE ÁGUA MINERAL, desses de vinte litros!
Eu, questionador do social que estava grudado no balanço e no molejo de Leonardo com o seu tambor grande, quando dei por mim já estava obcecado vendo aquele sujeito com o seu garrafão tipo vinte litros, ele que soprava na boca  e batia na bunda do botijão, produzindo um som e formando a sua percussão - um verdadeiro e autêntico e jamais visto: um TAMBOR ONÇA. Claro, fiquei impressionado com aquela armação!
- Sempre que vou ao meu lugar, o meu irmão-paterno, AFONSO, tão irmão quanto os demais, não abdico de sua companhia. Eu o “íntimo” e ele me acompanha, por vezes a duras penas, deixando os seus afazeres que se desdobram entre sua roça, um criatório de peixe ao quintal e um pequeno criame de gado lá adiante – tudo aquilo que compõe o “sonho de sua vida”.
Então, dirijo-me ao Afonso e pergunto quem é aquele homem do outijão de água mineral. Ele me responde: “É O TIMBÁ”. Timbá? Perguntei. Sim, Timbá, é um antigo trabalhador de engenho-de-cana do Paquetá. Trabalhava na moagem, na fabricação do mel, do “açúcar bruto”; depois tonou-se “o homem do alambique”, que é aquele que cuida da produção anual da cachaça. Evidentemente uma mão de obra “qualificada”, até porque não é qualquer um que sabe cuidar daquilo para deixar a cachaça no ponto e tudo o mais, etc. etc...
Então comecei a pôr os neurônios para trabalhar e ir buscar no tempo lembranças daquele velho roceiro de engenho do Paquetá, chamado TIMBÁ. Ainda que aos frangalhos da lembrança e dos recônditos da mente e da alma, fui encontrá-lo: era aquele homem do alambique, que produzia um garrafão e bebia outro; produzia um garrafão e bebia outro. E assim tocou a sua vida no Engenho do Paquetá, durante toda a sua vida, sem arredar – qual num trabalho escravo, no sol a sol, sem carteira assinada, sem direitos, só com a “diária” e mais nada...
Ontem à noite, lembrando-me dessa cratera chamada TIMBÁ no trabalho do engenho de cana e cachaça, eu o associava a dois cavalos bravios na disputa por algo comum, justo naquele momento em que os dois se engalfinham, depois ficam ponta de pé nas alturas, peito a peito, na força bruta e ao risco de um desastre fatal entre ambos. Terminado o combate, cada um sai para o seu lado, onde não há vencedor nem vencido. Era assim que eu me punha a associar as pingas de Timbá e a cachaça que ele produzia no engenho. Diria que a cachaça não o venceu, como ele também não venceu a cachaça.  Embora ambos vivendo às turras: um engolindo e o outro sendo engolido com um organismo se adaptando e resistindo às agruras.
Ontem quando cheguei ao depósito para trocar o garrafão de vinte litros de água, lembrei-me de TIMBÁ e daquele noite de “boiada”. Leonardo roubado a cena com o seu “tambor grande” e Timbá estático, “daqui não saio, daqui não me movo”. E me pus a batucar e contei para uma jovem e educada moça que estava ao caixa, a história de TIMBÁ.
-    Hoje, na madrugada, morrendo de virose que toma de todo o meu corpo, senti-me na “obrigação de fazer o texto”. Lembrei-me então de Roberto quando ele canta “COISAS DA VIDA”. E concluí que até poderia dar um título “... de Timbá, a Roberto, até aqui”. Pois que, se Roberto tocava suas canções ao som de guitarra, Timbá executa o seu bumba-boi ao som de um  garrafão, de 20 litros.  Guitarra e garrafão, vindos  da produção industrial.