A VIDA E O SONHO DE CABO ZÉ

CABO ZÉ é um ser humano em carne e osso. Quarenta e cinco anos, solteiro. José Pereira de Carvalho, um nome de que quase só ele tem notícia. “Naifabeto”, como ele mesmo costuma se autodenominar, ainda assim “junta as letras grandes” e soletra nomes e lê pequenos números. Sua assinatura se dá com a sua impressão digital. Chega a ser impressionante o analfabetismo de Cabo Zé.
Aos oito anos, vindo da “região do Japão”, o moleque chegou com os seus pais e irmãos aos costados da Imperatriz. Situação difícil, a entidade familiar, pais e filhos em sete pessoas, foram todos morar debaixo da ponte. Debaixo da ponte do Cacau, na BR, onde ficaram por algum tempo. Mais tarde, o velho pai, trabalhador que não se entregava, tomando pé aqui e ali, acabou por achar um chão desocupado ali para as bandas da beira-rio, onde fez morada e fez plantio. Terreno grande e bonito. Ficou por lá muitos anos sem ser incomodado. A cidade foi crescendo e logo apareceu um “dono”. Perderam o lugar e saíram de lá “com uma mão na frente e outra atrás”, conta Zé. O garoto foi vender picolé, banana, engraxar sapatos, limpar calçadas e quintais e nessa lida a escolaridade... já era. Daí a sua digital em lugar de sua assinatura.
Conheci o Cabo Zé nos mormaços e nas encruzilhadas da vida. Sempre um trabalhador, um braçal. E ali, sim, “suor do rosto” para ganhar o  sofrido pão de cada dia. Não só suor do rosto, mas do corpo inteiro. Fico igualmente impressionado com o braçal, o obreiro, o serviçal, que é o cabo Zé – um sujeito que nesta vida ganha o “de comer” com os braços, com a cabeça sob o peso, com os ombros  e com a ergometria do corpo, sempre ao serviço pesado – ora carregando, ora descarregando.
Não gosto de ver as tatuagens que o Cabo Zé tem pelo braço, dá-me uma má impressão. Mas o próprio não esconde nem nega o seu passado envolvido que foi com drogas e a prisão que andou puxando na antiga cadeia do primeiro distrito, de velhos tempos. Ele mesmo me conta que um dia, através de um “advogado de graça”, obteve um habeas corpus, mas não tinha dinheiro para custear o alvará de soltura. Aí um detento de sua cela, “o Bigode”, tomou-lhe o partido, sentiu-lhe as dores e assinou um cheque: “Toma Cabo Zé”! E um mês depois de assinado o Alvará de Soltura Cabo Zé ganhou a liberdade.  Uma perversidade do sistema!!!
Cabo Zé, porém, tem uma marca que é o seu diploma, a sua espada, a sua estrela-guia, o seu atestado de conduta: A HONESTIDADE. Honesto por onde vai e em tudo o que faz, até “debaixo d’água”. Honestidade que prega aos seus colegas de trabalho. E não abre mão disso nem por tudo nem por nada. E assim por onde vai ganha o apreço e o respeito daqueles que utilizam o seu suor, o seu serviço braçal. Faz algum tempo trabalhou de “carteira assinada”, tomou de conta e deu conta. Nesse meio de caminho, deixou a bebida alcoólica, entrou para a igreja evangélica e “Deus lhe deu uma companheira”, me disse. Tudo seguia numa nova vida, tudo nos trinques, tudo legal. Até os familiares da esposa lhe aprovavam, lhes apoiavam.
Conta o nosso personagem que depois de alguns anos de convívio, a esposa com a qual casou-se “de papel passado”, qual uma Dalila, passou a especular as forças do seu marido. Queria porque queria que ele “pedisse conta do trabalho” e com os direitos havidos, inclusive FGTS e seguro-desemprego, comprasse uma casa. E por segurança, dizia a esposa: registrasse em nome nesta. Cabo Zé, qual um Sansão, vencido pelo assédio, rende-se à sua Dalila e “naifabeto”, faz tudo como lhe foi dirigido: pede demissão do trabalho, recebe os direitos e compra uma casinha ainda em construção. Nem chegaram a morar por lá. - Pouco depois vieram os desates do casal. Cabo Zé desviou-se de sua igreja que frequentava com a esposa e voltou a beber. Brigas constantes. Era o começo do fim. Separou-se, vendeu a casa e partilhou. A sua parte, o bandido “mandado” levou. Fui testemunha!
E tudo que o nosso personagem hoje tece e do que sobrevive é um verbo único: CARREGAR. Carregar e descarregar cargas de tijolos e lenha. Por vezes também carrega e descarrega mudanças. E só raramente um telhado para corrigir. E assim toca a vida no oba-oba, na corda bamba, vivendo de biscates. O trabalho de carregar e descarregar tijolos e lenha exige-lhe constantes e distantes viagens que implicam numa tarefa que invade as madrugadas e altas horas. Tudo no serviço bruto. Por vezes no escuro, até. E haja sofrença! E ao fim das tarefas, o cristão está cansado, “quebrado”. Por vezes mal dorme, mal come para recomeçar a peleja, quer na madrugada, ou ao amanhecer do dia.
Por vezes o peão fica à espera e o serviço não vem, não aparece e ele fica de “cara pra cima”, doido, inquieto, estressado à espera da convocação. Por vezes o serviço é pouco e o dinheirinho menos ainda. E assim vai tocando a vida na corda-bamba, no “ora-e-veja”. E agradece a Deus por tudo – pela “diária boa”, pelo ganho a menos,  linguagem e postura que aprendeu nos tempos de evangélico, quando tinha companheira e emprego regular.
Cabo Zé todas as semanas compra um bilhete do sei-lá-o-quê-da-sorte. Almeja ganhar um carro, vendê-lo e comprar uma casa, até porque mora de favor na casa de um irmão  também “naifabeto”, com o qual associa-se nos serviços diários de carregar e descarregar. E todos os domingos Cabo Zé sonha com a perspectiva de mudar de vida com a “sorte grande” – e a casa própria. Lamenta-se, porém, porque nunca conseguiu sequer “livrar” o custo da cartela: quinze reais! Um pedaço e tanto do quanto consegue ganhar na semana. Mas nesse azarento e diabólico e infernal jogo, são muitos na miséria para fazer a riqueza de alguns.
Uma coisa, porém, move o cabo Zé: tudo o que ele fala é do seu trabalho, só do trabalho e nada mais do que o seu trabalho. Possessivo, traduz um prazer, uma satisfação, uma realização pelo seu trabalho. Louco por uma carga – serviço bruto, carregar e descarregar é a sua sina, o seu destino. Insiste que é desse trabalho que ele sobrevive honestamente, que ganha o pão, que compra roupas, que paga o seu bem maior que é um celular-zerado. Um trabalho em que muitas vezes sente-se injustiçado, que encerra às tantas da noite e que outras vezes começa a uma, duas, ou três da madrugada. E que, não raro, ao final da jornada, “está mais morto do que vivo”, cansado e quebrado, do que visível, envelhece precocemente. Mas que ainda assim tudo isso é o seu verbo único: é o seu trabalho, é a sua vida.