ASSIM COMO SÃO AS PESSOAS, SÃO AS CRIATURAS

Faz anos, li uma frase num para-choque de caminhão: “Assim como são as pessoas, são as criaturas”. Por um longo tempo o ditério martelou o meu juízo, ao admitir ali que “pessoas” sejam igual ao mesmo ente, à mesma “criatura”. E fiquei com aquilo me incomodando.... me incomodando.
Mais tarde, quando eu tocava um sítio ali para as bandas do conjunto residencial Itamar Guará (bate na madeira três vezes e põe um galho de arruda por trás da orelha, que é para isolar), eu costumava acompanhar a “conduta” dos animais e insetos ali existentes, a partir das saúvas, dos maribondos, dos periquitos que ali pousavam, das galinhas, dos pintos-rebeldes, da cadela – minha amiga e companheira, dos guinés-arruaceiros na hora das refeições e do solitário peru, meu recepcionista em festa e alegria à minha chegada. E os afagos do “patrão”.
Vi, então, que um galo violento e perverso voou com dois pés e suas esporas sobre o peito de uma companheira de trabalho com ciúme do seu harém. Eu que já vinha “envenenado” com esse galo, decretei-lhe a prisão. Pus uma “peia” em seus pés, limitando o seu ir-e-vir, para evitar qualquer violência contra terceiro/s. Vi também que uma galinha pequenina, envelhecida, amante do sujeito, não desgrudava, não saía do seu lado, o tempo todo, o dia inteiro. Aquilo chamava a minha atenção.
Lembrei-me então que, no ano de 1973, quando cheguei por aqui, encontrei um homem, grandalhão, sisudo - preso, porque matou um homem. Sua mulher, uma pequerrucha e desvalida, uma coitada e sem nada nesta vida, não desgrudava do seu homem. Era ele preso lá dentro e ela presa do lado de fora. Tudo o quanto arranjava aqui fora levava para ele: um pão, uma banana, uma laranja, um doce. Vi isso tantas vezes. E quando ele foi cumprir pena na penitenciária, ela seguiu atrás. Fazia faxinas, mandados, lavava roupas e ganhava dinheirinhos, sempre a serviço do seu homem. E ficou por lá até que ele cumpriu a sua pena; até que um dia os dois voltaram a esta Imperatriz que sempre os viu padecer.
Confrontando, no imaginário, as ações do galo e sua galinha; do homicida e sua mulher, só então – creia/m, pude melhor entender a frase do para-choque: “Assim como são as pessoas, são as criaturas”. E a propósito disso, para lembrar que hoje já não se faz ditérios de para-choque como antigamente. Até nisso os tempos mudaram! Pois bem, a partir desse confronto, passei a observar aqui e acolá, nas tranças e encruzilhadas da vida essa de... “pessoas” e “criaturas”.
- Recentemente, um barulho danado, uma altercação no ambiente, provocou um incidente de congestionamento no trânsito daquela rua estreita e asfaltada na beira-centro da cidade. É que um cachorro, meio que pequerrucho, branquelo, um tipo cabeludo com as madeixas aparadas, mostrava-se incontido, irrequieto, indócil, “doidão” e loucamente “apaixonado”, por uma negrinha do mesmo DNA, esta que se fazia arrogante, dando de ombros e indiferente àqueles apelos intencionais, nos braços de sua ama. Enquanto o branquelo se esguiçava em mesuras, trejeitos e firulas, a negrinha nem aí para aquele assédio irresponsável.
Na vida real entre os humanos não é diferente! Aquela outra frase do para-choque também já dizia que “não existe mulher difícil, o que existe é mulher mal cantada”. Quiçá aquele branquelo, zuadento, histriônico e indiscreto tivesse usado a discrição, os “bons modos”, a perspicácia e a maleabilidade, quiçá teria despertado a sensibilidade daquela arrogante. Afinal, o rapaz mostrava-se em pé de igualdade naquela situação. Eh! Porque “todo sapato um dia encontra o seu pé”, já dizia o para-choque do caminhão... Aí eu digo como já dizia o Jeovah do Pequizeiro: “Eu tô mentindo?”.
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Seu Bernal era um caseiro-chacareiro, enrugado do sol-a-sol, teimoso, muito trabalhador, mas bom de pinga e... mentiroso. Contava Bernal que vivia de amores com uma colegial, filha de gente boa. Dizia que um jaleco que eternamente vestia foi presente de sua amada e que até dormia na casa daquela adolescente ao consentimento dos pais. De resto vivia sozinho, cercando e protegendo a ferro e fogo uma cadela que encontrou por aí... Certa feita, chega ao sítio uma jovem interiorana, tola, quase analfabeta, dessas sem noção da vida. Bernal armou-lhe uma estratégia para fisgá-la: ele possuía um aparelho do tipo três em um: rádio, toca-fita e gravador, um tipo grandão, parecia coisa de garimpeiro da época, desses que acendia várias lâmpadas coloridas e chamava a atenção.
Bernal, do nada, então, pôs-se a desmontar aquilo, mostrando suas habilidades como rádio-técnico, bem como seu poderio econômico com aquele “gravadorzão” de pouco alcance aos mortais comuns. A moça se aproximou, ficou fascinada, vendo o trabalho de Bernal e aquele belo aparelho. E daí a aproximação. Era isso que ele queria. Dias depois deu-lhe um relógio de pulso, amarelado, que deve ter custado pouco mais de um e noventa e nove. Era a conquista. Essas são as pessoas.
Vamos às criaturas: certa feita, a TV mostrou, na mata, um pássaro solitário. Ele cantava à procura de uma companheira. Para isso, preparou um “arruado” à frente de sua casa e, creiam, enfiou penas coloridas diversas no seu terreiro, mostrando beleza, riqueza e poder. E quando uma candidata um dia respondeu ao seu canto, quando lá chegou ficou encantada com o que viu! Encantada e apaixonada! Penas? Não devem valer nem um e noventa e nove. Mas era isso que aquele solitário tanto queria!
Novamente confrontando no imaginário a caça de um Bernal solitário com aquele seu três em um grandão, lâmpadas multicores que acendiam e apagavam, coisa de endinheirado, somado aquele seus dotes de “rádio-técnico” e aquele pássaro cantante, também solitário que montou um esquema, frente do seu terreiro à caça de uma companheira, volto à frase do para-choque e vejo que... “assim como são as pessoas, são as criaturas”.