“...ANDAR COM AS PRÓPRIAS PERNAS”
Era manhã, começo de manhã daquele meio de semana. A minha Rua Manoel Bandeira era transpassada por um tempo frio do pós-amanhecer de um tempo cinzento e um céu nevoento. E cá embaixo lá vou eu, metido a questionador do social – vocação de um velho tempo-colegial; eu que tantas vezes tenho dito para mim, como bem assim para uns tantos à minha volta que: “o homem há que lutar na vida para caminhar com as suas próprias pernas”.
- É um pensamento e uma frase que cunhei e que tem se tornado para mim um inevitável princípio de vida. Um princípio com que vivo e convivo no meu trabalho como “operador do direito”, nas encruzilhadas da vida, nos apertos sejam eles quais forem. Na esfera profissional, “o andar com as próprias pernas”, então, é como uma corrente a que temos que arrastar sozinho – saia de onde sair, venha de onde vier, parta de onde partir. Enfim o “andar com as próprias pernas” é navalha na carne e lei da vida a que tantas vezes nos submetemos.
E nesse caminhar da vida, lá vou eu na reta-plana da minha Manoel Bandeira quando uma inusitada cena surge à minha frente em prova e contraprova a essa minha teoria de que o homem deve, em esforço próprio e em tudo na vida, “caminhar com as suas próprias pernas”. Vejo então que logo ali caminham duas pessoas. Um auxiliando o outro e nesse contraponto, um sendo “amparado” pelo outro.
O homem que caminha amparado revela-se um idoso em idade avançada, setenta e tantos, oitenta e poucos anos, avalio. De caminhar trôpego, milimétrico, debilitado, incapaz de sozinho mudar passo tal a senilidade a fraqueza e a doença que o abatem. Visivelmente um doente-terminal. Enfim, uma cena tão real quanto dramática – tudo a revelar “o drama nosso de cada dia”. E bem ali a lacerante e estampada falta que faz o “caminhar com as próprias pernas”.
E o anfitrião, o parceiro e apoiador? É um jovem-rapaz de seus trinta e poucos anos – metade da idade daquele outro, este que de tão consumido pelo alcoolismo diário e sempre, ao lado do seu apaniguado a quem protege, parecem ambos tão idosos e tão doentes e tão desvalidos. E mal pode-se distinguir quem está amparando e quem está sendo amparado e por quem.
E seguem os dois no seu caminhar difícil, acorrentado pelas cruezas da vida, a duras penas, para mudar o passo para seguir em frente, para sair do lugar – quase pelo meio da rua, tal a insanidade a que se submetem ambos como se um dependa do outro e vice-versa, naquela crua, amarga e difícil tarefa de caminhar. E os carros que os evitem; que deles desviem para que todos cheguem ao seu destino sem mais atropelos.
Sigo dali entrecortado em dor-moral e pensamentos que simultaneamente me levam do presente ao passado e ao futuro em tantas interrogações nesse pantanoso terreno da vida como ela é. Em seguida, a dura cena desaparece e mais adiante o pensamento espairece. Recomponho-me desse quadro que me mostra num pesadelo um retrato da vida, mas fica comigo a velha confirmação da necessidade que deveremos lutar na vida para andar com as próprias pernas. O mundo dá voltas e a vida continua.
E continua. Quatro, cinco dias depois. Agora é um novo dia. Outra rua, outro lugar. Olha quem lá se vão! Aqueles dois! Um amparando o outro, o mais novo, de passos trôpegos em seu dia-a-dia, consumido pelo álcool diário tão envelhecido quanto o mais velho. E seguem ambos, sol nas alturas, como que de volta rumo ao ponto de origem de onde, certamente, partiram ainda cedo da manhã. E seguem nesse trânsito selvagem, quase pelo meio da rua, não por desafio proposital mas pelos desafios da vida, pela insanidade que se lhes toma conta. E os carros que deles desviem, que deles se livrem para que todos cheguem aos seus destinos. Bastam os atropelos de que a vida é feita. E a vida continua.
E continua! Quatro, cinco dias depois, converso com a minha jovem sobrinha, filha de uma águia e tão águia quanto a sua mãe, minha irmã. Numa inusitada conversa, ela falando de si, certificou-se e certificou-me de um verbo íntimo e conhecido. Disse: “...a gente precisa caminhar com as próprias pernas”. Aquilo explodiu em mim. Afinal, aquele verbo é uma velha frase que dele faço um princípio e meio de vida. E, novamente, outras tantas interrogações. E por que teria aquela jovem-águia, àquela altura me dizer que “a gente precisa caminhar com as próprias pernas”? Logo agora que estou “escrevendo” justo este tema!!! E por que então? A vida continua.
E continua. Quatro cinco dias depois, drama agora é uma terrível encruzilhada. Um recurso judicial. Mal tenho a noção de por onde começar. O resto a Deus pertence. No tic-tac silencioso do teclado, muita esfrega e refrega, dois dias de batalha e lá se vão 7, 8, 9 páginas. E quando eu pensei que o recurso estaria a um passo da sua conclusão, eis que me surge uma clareira, um estradão, um terreno virgem a ser explorado. Tive que remodelar, recomeçar tudo de novo. E lá de vai mais um dia inteiro!
Agora é um novo dia! O recurso está pronto! Chamei os parceiros de escritório, estendi-lhes aquele trabalho, e expus-lhes aquela inarredável e intransferível obrigação que tive de fazê-la sozinho. E em tom didático, porém provocador de quem vive o cumprimento da missão, os ossos do ofício que é a profissão, asseverei-lhes esse meu velho princípio de vida, tal como se me revelou a jovem águia; tal como dias antes derramou em mim, em simultâneas reflexões ao ver aquele caminhar perdido, milimétrico quase sem sair do lugar daqueles dois que se amparavam reciprocamente em meio ao trânsito perverso., naquela manhã de um tempo frio e cinzento e de um céu nevoento.
É quando abstraio a velha lição que a vida me ensina que “a gente precisa caminhar com as próprias pernas”. Quanto, cinco dias depois... E a vida continua...
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