CARTA ABERTA A ITAERÇO BEZERRA

Meu caro ITAERÇO BEZERRA: receba esta acompanhada do meu afetuoso abraço e das minhas cordiais saudações.

Distanciando-se, vai o tempo em que a gente se encontrava pelas ruas e calçadas da vida, rolava uma conversa, falava dos nossos triviais e cada um saía para o seu lado.  Pouco mais adiante se vai aquela noite, no lançamento do teu livro UM PUNHADO DE POESIAS E UMA MÃO CHEIA DE PROSA na “Maçonaria da Rua Alagoas”, quando você sob as luzes da ribalta e eu lá no distante e soturno pátio, de inopino, refere-se às lavras destes... CAMINHOS POR ONDE ANDEI. Sem dizer palavra, te mandei 10 pontos para a tua carteira de motorista. E me tornei teu fã.

No domingo passado, quando abri o caderno EXTRA de O PROGRESSO, vi que você estava lá vestido naquele “capelo” privativo dos imortais, sentado àquela cadeira também privativa dos imortais e com aqueles cabelos brancos todos teus, outra peculiaridade dos imortais. Não vês Ulisses? Santa Edelvira? Milesi? Weliton? E quando vi o título “OS CAJUS ROUBADOS”, corri ávido e sôfrego rumo à leitura. E imaginei sem pensar: é já que eu vou me lambuzar com nódoas de “cajus roubados”.

De saída, você diz: “Apesar de parecer velho, sou apenas um menino das antigas”... Carambas, cara, já começou falando de mim e para mim. E segue o texto: “sou do tempo da lamparina, do fogão de lenha,... ...  do leite mungido tomado na porteira do curral”. Sou do tempo das máquinas de escrever Olivetti e Remington, nas quais fiz o curso de datilografia com direito a cerimônia de formatura, com entrega de diploma e tudo mais”... do tempo da camisa-volta-ao-mundo. Extasiado, me sentia lá dentro partícipe do fato e da cena e de tudo aquilo ali, embora  que não conheci nem o leite mugido nem a porteira do curral. Pois o meu pai tinha só uma roça de toco. A  máquina de escrever, porém, me abriu portas; a lamparina foi a minha luz. E a camisa volta ao mundo ao lado da “calça de nycron”, foram meus charmes nos bailinhos de radiola e disco de vinil, naquele meu velho tempo colegial e primeiro emprego.

E logo, imaginando sem pensar, eu me punha a completar: “Sou do tempo em que homem namorava e casava com mulher; do tempo em que mulher se casava com homem, do tempo em que homem era homem e que mulher era mulher. Sou do tempo em que o “armário” era só um móvel a serviço do vestuário. Sou do tempo em que “namorar” era uma coisa leve, “laite”, mão na mão, cineminha, piquenique. Hoje namorar é  transar uma vida, parir três, quatro filhos. Os tempos mudaram!

Deixei as minhas divagações como se pretendesse completar o texto, logo de quem? Do “imorrível”, como você assim o dia me disse. E logo vi mais adiante o sítio frutífero de tua bisavó; tua “bisa”, como dizes. Ela que do que alto do seu terreiro, punha-se a vigiar aquele “santuário” como você mesmo o diz. E eu vendo a história e de olho nessa tua memória! A certa altura você como que ferido por tuas culpas, adjetiva tua “bisa” como “RABUGENTA”.  E, novamente, sem pensar, senti que levei uma porrada!

Rabugenta? Corri ao dicionário e vi: Rabugenta: mal-humorada, e acrescentei: briguenta, encrenqueira, abusada. Aí meu caro Itaerço, eu novamente, imaginei sem pensar: até que você poderia “maneirar”. E ao invés de RABUGENTA, poderia dizer “ciosa do seu sítio”, “vigilante”, “onipresente” e até mesmo “possessiva”. Mas não:  detonou a “bisa” como “rabugenta”. E imaginei sem pensar: não gostei.

Vi com um terrível pesadelo e suspense a cena em que você aos oitos anos e teu irmão aos seis, mais atrás, iam ponta de pé para roubar os frutos da tua “bisa”. E senti-me o terceiro nessa treita furtiva. Era eu vivendo e dando vida ao fato e à cena.  E via direitinho você dando as ordens: “não olha para trás”. E ouvia o teu irmão  suplicante e justificativo; entre choro e soluços: “te juro que eu não olhei para trás”. E eu ali, o terceiro da trupe, sentindo-me partícipe e culpado. E nessa senda, contemplando aquele sítio frutífero: Imbuzeiros, cajueiros, mangueiras, lá naquela “lonjura”, pras bandas do teu paraibano Catolé  do Rocha.

E li aquilo tudo e me perguntei: “Sim! Mas e cadê os CAJUS ROUBADOS”? Não encontrei. Voltei à releitura e nada dos cajus roubados, como aliás roubada não foi nem mesmo nenhuma fruta porque a “bisa”, rabugenta, mesmo de “vista curta”,  vigilante e possessiva, marcava colado. E ao simples ranger dos gonzos da cancela, já detonava: “para aonde vocês vão, seus moleques?”. E os dois, comigo o terceiro em fila indiana, naquela empreitada. E não vi nem cajus e muito menos roubados.

Uma semana depois, na noite acordada, na mente, me pus a rever aquele texto e a fazer esta carta. Mas aí, aquele grito torturante da “bisa”, de lá de cima do seu terreiro, rabugenta, ciosa e vigilante, atenta a qualquer rangido dos gonzos da cancela, dava o grito: “para onde que vocês vão seus moleques?”. E o desfecho: “Daí  em diante nada mais importava. Só havia uma certeza: a previsibilidade da surra  e a imprevisibilidade da intensidade dela”. É quando me sentia cada vez mais dentro do texto e da vida real. Por menos do que isso, minhas tacas e surras fizeram parte da minha rotina. Então, meu caro Itaerço, no teu texto eu estava lá em corpo e alma.

Sim mas... e cadê os CAJUS ROUBADOS? Aí, eu, novamente, na noite insone, fazia girar a roda da mente para ver que os poetas são senhores e possuidores de todas as licenças. O poeta faz a gente entender sem que ele o diga;  faz a gente ler o que não está lá; o poeta sussurra e a gente ouve como um grito; o poeta faz de um grão de areia uma montanha e de um pingo d'água um oceano. Então ao poeta, todas as licenças, todas as liras. E então só agora entendo que mesmo sem caju nenhum naquele teu texto, lá estavam OS CAJUS ROUBADOS. Eu bem que podia ver. Eu também estava lá! E não foi à toa que o meu velho avô Doca Barros, ao seu tempo já ensinava: “escreva que quiser e leia quem souber”. E ainda posso ouvir quando você, incisivo e liderando o magote, todos em ponta de pé, dizia: “não olhem para trás”.

Pois é, meu caro Itaerço, eu também estava lá... E o que é pior: assim como o teu irmão – que não confessou a culpa e ainda jurou – acho que também olhei para trás.