A ÍNDOLE DAQUELA GENTE
Estou de malas arrumadas. Vou ao meu chão-natal, viagem de trabalho nº 34, em cinco anos, onde edifico o MEMORIAL DE ANTÔNIO DE INEZ, para lembrar a memória dos meus pais e, na carona, outros tantos decanos e decanas daquele meu chão feito a foice e facão, suor do rosto, “mancepa” de quebrar coco-babaçu, pilão e mão-de-pilão. Este texto criado em fevereiro de 2011. Agora é uma reescrita, “remasterizada”, que você me dá a honra da releitura.
*******************
Doca Barros, Norato Baros, Lorenço Estrela, Mundico do Sertão, Antônio de Inez, Bastião Folhá, Lionço de Cafuzinha, Rozendo de Inez, em meio a outros tantos, ao lado de suas mulheres e em meio às suas famílias, eram os decanos daquele meu lugar. Todos eles lavradores, roceiros na vida real. Todos eles em suas casas de palha, cuja tranca era uma embira ou uma “cordinha” e nesta um pequeno amarradilho que fazia a tranca da casa. Era assim naquele meu lugar.
As moradas não conheciam nem portas de madeira, nem trinco, nem corrente, nem grades, nem cadeado. Quando muito e só em raros casos uma fechadura de mentira, da chave grande, um tipo que hoje nem existe mais. Era assim no meu sertão o sentido de segurança de uma casa ao entorno de portas e janelas: – uma embira, um barbante com um amarradilho em “nó de saia”.
Na lida com a sua lavoura, aquelas pessoas deixavam as suas casas e iam diariamente para os seus roçados, deixando a morada sem um único pé de cristão, sem absolutamente ninguém. E soltas as suas galinhas e porcos e outros bichos como eram e são todos criados. E da mesma forma animais de serviço. Saíam pela manhã, ainda cedo e voltavam ao fim do dia ou ao começo da noite.
As casas então ficavam como uma “tapera”, por vezes, porém, crianças “tomando conta de casa”. Geralmente três ou quatro ao encargo do mais velho. Era comum, no diário, passar-se por uma casa e esta sem um pé de cristão ou apenas as crianças ou os vira-latas e, como sempre, os bichos domésticos mariscando à beira do quintal. Por vezes passavam a semana inteira fora de casa, na roça distante. E em casa só o amarradilho de barbante nas portas. Creia!
Também ficavam as roupas e tudo ficava guardado. E, na mala ao fundo com uma pedra de desinfetante – como gênero da civilização – também guardavam-se joias em ouro: brincos, cordões, anéis, alianças. Tudo isso guardado e protegido por uma simples embira ou um barbante, enrolados a um singelo prego ou com um simples “nó de saia”. E a minha avó que tinha na sala eternamente aberta, uma octogenária imagem de Nossa Senhora da Conceição, seu bem maior, deixava-a exposta sempre com uma breve oração: “Nossa Senhora tome conta desta casa”. E lá se iam todos para as roças, deixando a casa sozinha, sem um pé de cristão, com as portas amarradas num barbante.
As pessoas – homens, mulheres crianças ou ainda “viageiros”, que passavam na “estrada”, bem sabiam que ali não tinha ninguém; também sabiam que a segurança daquela e de tantas outras casas era aquele simples amarradilho em barbante; também imaginavam que lá dentro jaziam as coisas da casa: ouros, pratas, mantas de carne, peixe-seco; guardados de cozinha, porém NINGUÉM, absolutamente ninguém, ousava sequer aproximar-se da casa fechada, ainda que ao suposto engano de pedir água de beber. E nesse COSTUME sequer apanhar um único fruto que tivesse ali no terreiro, à beira de casa.
A casa, as coisas, os paióis, os “teres” era tudo COISA ALHEIA, e em “coisa alheia” ninguém ousava mexer. Era assim o caráter, o COSTUME, a ÍNDOLE daquela gente desarmada de perversidades e voltada para o sentimento e o respeito de que “coisa alheia, tem dono”. E se tem dono, não se pode mexer. E como não se pode mexer, fica ali no lugar onde está. Ninguém pode tocar. Pode apodrecer, mas fica lá. Era assim a lição dos mais velhos. Era assim...
É para esse gueto de roceiros, queimados em sol-a-sol, calejados e analfabetos, agora um tanto modificado, para onde volto nesta semana onde ali trabalho o MEMORIAL DE ANTÔNIO DE INEZ, para fincar ao chão e no espaço pegadas da memória dos meus pais e outras almas de lá. Esse chão do qual faço questão e não consigo me arredar.
Mercê de dizer, no entanto, que os maribondos se espalhavam e a regra se quebrava e taca cantava quando um moleque desatinado ou o seu grupelho de passagem, “jogava pedra” sobre uma fruteira alheia e, nesse desatino, se lhe derrubassem as verdes que se faziam estragos pelo chão. Aquilo era uma ofensa, um desacato à ordem aos bons costumes e à INDOLE que ali reinava.
E o que acontecia? Os pais do moleque ficavam sabendo da bandalheira, da desordem e o filho ia prestar contas com a taca, com os cruzados da taca que ficavam pelo corpo: – “Apanha que é pra não mexer em coisa alheia”. “Apanha que é pra saber que coisa alheia, tem dono”. Apanha que é pra saber que tem ordem de pai e mãe. Porque quem não apanha dos pais, apanha da polícia”. Era assim, a ÍNDOLE daquela gente!!!
Comentários