“...PARA GANHAR O DINHEIRO DOS OUTROS”

Madrugada acordada e o compromisso de fazer um texto para estes... CAMINHOS. Mas a mente, qual um carro no “prego”, vai pelos empurrões. Não roda, não gira. Quase não sai do lugar. E então foco no tempo e vejo que  entre o fato e a cena lá se vão trinta e poucos anos. Ali naquela ruazinha estreita que faz a ladeira que sobe da beira-rio. No topo dessa ladeira, cruzamento com a Rua XV de Novembro havia o então Cartório do Segundo Ofício. Um ponto e tanto de convergência de pessoas: ribeirinhos à cata da cidade e o sarilho de gente aos avios do cartório. Um ponto em que alguém poderia tirar proveito.
E então, sobre a calçada do cartório, sentava-se diariamente um homem de  boa idade, em trajes regulares, que pedia esmola. Era um homem de voz anasalada, “fanho”, como dizem. Utilizando-se de um “reco-reco” improvisado sobre uma lata de óleo “quadrada”, parcialmente recortada (de um lado), ele arranhava uma palheta sobre pequenas molas adaptadas e pronto: ali estava o seu “reco-reco”, o seu instrumento, companheiro e conivente na sua pedilança.
E entoava um canto e executava o seu reco-reco entre uma estrofe e outra. O  conjunto formado por aquele homem “fanho”, o seu canto anasalado “sem gosto e sem sal”, e aquele reco-reco intermitente formavam o conjunto, a obra e a cena. Pronto! Estava armada a estratégia para pedir a esmola.
Nessa rotina à beira do cartório a que, transeunte assisti tantas vezes, vi que certa feita um outro viandante como que aborrecido ou enciumado, vendo o homem e a cena da pedilança e aquele canto “sem gosto e sem sal”, soltou um verbo com um tom de protesto, num misto de afirmação, interrogação e interjeição: “O que a gente não faz para ganhar o dinheiro dos outros”?! Exclamava, perguntando. E eu, um “questionar do social em meados de carreira”, vi que essa frase soou aos meus ouvidos em tom de censura, tal o disparo.
Mas o que eu não imaginava é que aquela frase perduraria por tanto tempo ora indo ora voltando nas minhas lembranças, mexendo com as tintas da aquarela deste “questionador do social”. Tanto assim é que por várias oportunidades escrevi sobre o fato, a cena, o homem, o seu canto “sem gosto  e sem sal” e o seu reco-reco improvisado, sempre naquele mesmo lugar, à calçada do cartório, no topo da rampa daquela ruazinha estreita que sobre da beira-rio para desembocar na Rua 15 de Novembro.
Assim é que, sempre que vejo um descamisado por aí, nas pedilanças e nas ruas  da vida, remeto-me ao homem do reco-reco. E cruzo ideias e teço a engenharia da mente  e reflito sobre a vida, a sina e a missão de cada um sobre a face do chão. E observo e respeito e compreendo que afinal cada um tem um destino  a cumprir enquanto respirar sobre a face terrena. E me convenço, afinal, que “cada qual no seu cada qual”.
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E nessa sina do cruzamento com as questões do social, agora estamos no Entroncamento, naquele posto de combustíveis, final da Getúlio Vargas. Por ali andarilhava um cego, carente de barbeador, água e sabão, em trajes cansados,  dia e noite, noite e dia, acompanhado, isto é, conduzido por uma criança que me sugeria fosse um filho. E ficava vendo a busca obstinada, acostumada, daquele homem na pedilança dia e noite, noite e dia.
Hoje com os benefícios sociais da Previdência, bem  que se podia ver  que aquele pedinte conduzido pelo seu filho, devia ter o seu benefício (o seu aposento), mas a rotina da esmola, desse dinheiro pingado do dia-a-dia, que pela projeções da diária, deve ter lá a sua “gordura”, tonou-o mais ainda dependente e viciado na pedilança. E que, abandonar o vício de pedir esmola, nem pensar. Assim é que, certa feita sugeri-lhe que “poderia se aposentar”. Ah pra quê? Vi que ali rugiu e saltou uma fera. Era como se sentisse ofendido. Porque nesse raciocínio, quem tem direito a aposento, não tem direito a pedir esmola. E deixar de pedir esmola, nem pensar.
Faz algum tempo, vejo que esse homem mudou o caminho, o estilo e o “ponto”, ainda que continue acompanhado e conduzido pelo suposto filho, sempre um garoto. Agora ele senta-se sobre o pequeno degrau de uma calçada, ali perto dos Correios, na Dorgival Pinheiro. Utiliza-se de uma gambiarra formada pelo conjunto de uma pequena caixa de som, adaptada a minúsculo microfone em posição vocal e, de quando vez, insistente, abre o verbo: ESMOLA PRO CEGUINHO, ESMOLA PRO CEGUINHO...
Olho para a cena e permito-me ver que entre a caixa de som e o microfone, deve ter tido um pedaço do benefício da Previdência (o aposento). É quando volto no tempo e lembro-me daquele outro com o seu reco-reco, no topo da ladeira, sobre a calçada do cartório, no vai-e-vem da beira rio. E ouço a mais que trintenária frase  de censura que me atormenta: “O que a gente não faz para ganhar o dinheiro dos outros”?! Uma frase que a um só tempo interroga, exclama e censura.
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- Este tema eu mando para DIJÉ GUEDES, apresentadora do televisivo Repórter dos Bairros. Ela que, de iniciativa própria e com quem nunca antes houvera trocado um bom-dia sequer, me disse, como ninguém, da sua predileção e leitura destes... CAMINHOS POR ONDE ANDEI.

* Viegas questiona o social. E, nessa lida, 
lê as almas do dia-a-dia.