“LAVRADORES DE PAPEL” (só de papel)

Velhos tempos, aqueles tempos em que o Brasil era uma pátria feita dos braços e suor dos lavradores. Tempos doídos e sofridos, aqueles tempos. Muitos dos nossos pais, avós, tios, parentes e aderentes eram todos, senão quase todos LAVRADORES, na vida real. Era um tempo em que os lavradores realmente enfrentavam o sol-a-sol, de segunda a sábado, o dia inteiro, o ano inteiro. Era um tempo em que o homem ganhava a vida com o suor do rosto. Isso sim: suor do rosto!
Muitos dos lavradores de então costumavam, quando oportuno, espalmar e mostrar as mãos surradas, calejadas – duramente marcadas – pelo cabo da foice; do machado; pela corda do cavalo bravo, do burro bravo. Era assim a sua dura prova de trabalho, o suado diploma de “honra ao mérito”, a que tantas vezes se jactava como pessoa de ocupação lícita e honrada. Vi isso tantas vezes.
Lavradores, porém, não tinham nenhum prestígio, nem assento,  nem referência diante do grande social e das instituições verde-amarelas feitas de balcões de pau, num país daquela prateada máquina-de-escrever em tic-tac. Os lavradores, além de marginalizados do grande social, eram ignorados e esconjurados do universo consumidor. Enfim, as sobras da vassalagem. A esse tempo também é certo que a palavra ou profissão de  “LAVRADOR”, além de soar pejorativa traduzia um esconjuro em meio aos balcões-de-pau verde-amarelos, que herdamos da era-Zumbi.
Com a REVOLUÇÃO DE 1964, o Governo Militar, em grande feito, enxergou e trouxe novas luzes aos trabalhadores rurais, especialmente aos LAVRADORES – gente que trabalhava a terra e produzia alimentos e cereais, para o consumo tradicional. Vem daí o FUNRURAL e a “aposentadoria dos velhinhos”. O FUNRURAL, em princípio, foi um órgão de prestação de serviço público, entregue a particulares, afilhados  ou amigos ou bajuladores do poder da farda que acabou por desacreditar-se, soterrado de fraudes, e desaguando em suas próprias águas.
Era um tempo em que o FUNRURAL era feito para “velhinhos”. A esse tempo e mais adiante o “velhinho” já ganhava meio salário mínimo a título de “aposento”. De sorte assim que uma massa de ignaros e analfabetos, pés rachados e olhos em catarata e outros cegos, passou aos poucos a ser vista como gente, face aos recebimentos a que tinham “na folhinha”, quer dizer: no carnê, ao final de cada mês.
Com a Constituição de 88 (faz 26 anos), os “velhinhos” passaram a ganhar salário mínimo por inteiro e aí os LAVRADORES  que plantavam milho e arroz e faziam farinha e executavam outras pelejas, deram um novo passo na sua cidadania e no seu “status social” e, via de consequência, passaram a integrar um NOVO MUNDO, o mundo dos assalariados, capaz de girar a ciranda comercial ao seu redor e mais adiante. Lavradores, então, passaram a ser vistos como GENTE. Estamos agora em um novo tempo. A era em que o “LAVRADOR” tem nome , tem prestígio e tem valor. É gente! Quer dizer: tem um salário mínimo ao fim do mês.
Antes esconjurada e humilhante, a profissão de LAVRAVADOR agora é diploma. Agora todo o mundo quer ser LAVRADOR. Lavrador passou a ser profissão generalizada. Enfim profissão de todos. E gente que não conhece um pau-de-porteira, um “quartel” de roça; que nunca plantou nem capinou, nem arrancou uma mandioca; não sabe onde fica uma casa-de-farinha; que nunca plantou nem colheu uma linha de arroz – todos agora de bom grado autointitulam-se  LAVRADORES. Porque LAVRADOR agora tem salário de “aposento” ao fim do mês e décimo terceiro salário – chova ou faça sol. E, de quebra, além de portas escancaradas nas farmácias, nos consultórios de olhos e óticas ao lado; no comércio do vizinho; têm também a baiuca de um banco em cada esquina, oferecendo-lhe dinheiro emprestado. Viu?! Lavrador virou gente!
E assim, comerciantes, empregados sem carteira, funcionários municipais (até), alfaiates, pequenos fazendeiros, motorista, garimpeiros, vadios, cachaceiros e outros “ensapatados”, todos apresentam-se como LAVRADORES; todos de olho no futuro “aposento” previdenciário; de olho no erário público que está guardado dentro do INSS. E haja fantasia, simulação e farra no terreiro do “lavrador”! Muitos deles com CARTEIRINHA DE SINDICATO. A “carteira” é a sua prova. Só isso!!
De sua vez os jovens em idade de trabalho – outrora dos meios rurais, filhos e netos de lavradores, agora estão todos nas periferias das cidades. Parte da desculpa é que vão para o “estudo”. Ótimo! Mas isso também acaba sendo de faz de conta. E, não raro, tendem a bater os costados na marginalidade, ou a conviver com esta. Outros que acabam por herdar uma parte do “aposento” de papai, mamãe ou de vovô e vovó, seja no  teto; no prato da “bóia”; na roupa, no dinheirinho do bolso. Mas o caminho da roça, isso nem pensar. Não faz sentido.
Afinal de contas, aquele trabalho duro, debaixo de sol quente em que pais e avós envelheceram e “encaranguejaram” pelo trabalho duro, é coisa do passado. Afinal, estamos na era da informática  e da escolaridade e dos “diplomas” ao alcance de todos, com direito a BOLSA FAMÍLIA e merenda escolar. E assim os antigos lavradores estão aposentados. E a nova camada de mão de obra foge da roça como o diabo foge da cruz. A roça, pois, ficou sem ninguém. E só tem uns gatos pingados por lá. Sem ninguém, VÍRGULA, no real, porque no papel, lavrador é só o que tem! E como tem! Só no papel, na “carteirinha do Sindicato”. E na intenção do aposento.
Em verdade, porém, lavradores quase não existem mais. O verdadeiro LAVRADOR acabou. O que existe hoje são dublês de faz de conta, quase todos maquiados só na denominação e no papel: (procuração, declaração, CPF, identidade, casamento, recenseamento); filiação no sindicato para se legalizar “de direito e de fato”. É como pensam e fazem. Eis o LAVRADORES! São só “intitulados” e mais nada, porque os tocos, o suor e as agruras da roça, essa raça não conhece. E todo mundo doidinho para se aposentar como lavrador. E quando se aposentam, ainda blasfemam: “isso é um salarinho”. É como dizem esses LAVRADORES DE PAPEL.ocial – E-mail: viegas.adv@ig.com.br