GERMANA – MINHA IRMÃ DE LEITE

Germana é minha irmã-de-leite. Filha da falecida Mãe-MARCOLINA. Marcolina de Lorenço Estrela. Essa irmandade vem de um tempo em que crianças ao choro mamavam na primeira mãe que estivesse amamentando. Era costume e solidariedade  entre mães de um velho tempo, naquele meu velho lugar.

A partir daí, o respeito, a obediência e a consideração eram trajetórias que se faziam obrigatória a vida inteira para com a mãe de leite. E, dessa mesma cepa, para com o irmão ou irmã de leite. Tomar a bênção e dispensar atenção e estima à mãe de leite era uma obrigação. E mais do que uma obrigação, um sentimento, uma afetividade recíproca que jamais poderia ser quebrada. Um pacto natural para a vida inteira. Costume dos nossos pais que veio dos nossos avós.

Os irmãos de leite eram orientados para uma vida fraterna: estima, respeito e consideração mútuas. Não podiam brigar, não podiam discutir. Deviam-se ao respeito. Também ainda cedo eram orientados a que não podiam namorar, tampouco dançar. E assim seguia a irmandade: fiel, castiça, honesta e responsável.

Tenho vários irmãos de leite, mamei nas mães de todos eles e elas mas... tem duas dessas irmãs que se tornaram “marca registrada”, quiçá pela continuidade que demos a essa afinidade sem perder o elo; mesmo que a distância ainda cedo nos separou mas que, de tempos em tempos, quando nos encontrávamos reacendia-se a chama da irmandade. Chama que se mantém viva até os dias atuais.
Recentemente, ao construir o MEMORIAL DE ANTONIO DE INEZ, para edificar a memória dos meus pais, o que me tem levado constante ao chão dos meus ancestrais – uma pequena corrutela, esquecida nos rincões do meio do mundo, na Baixada deste “Maranhão de Meus Deus” – tenho, por conta disso, reencontrado constante com GERMANA – MINHA IRMÃ DE LEITE, até porque ela mora a dois passos dali, quase em frente – circunstância que tem permitido que a nossa relação de fraternidade se desdobre em laços afetivos. E assim segue a irmandade.

GERMANA, porém, me chama atenção pela sua luta, sua batalha. Ficou viúva ainda cedo e acabou de criar os seus quatro filhos, havidos com MACICO TEIXEIRA. Hoje ampara os netos. Morando sempre naquele mesmo e único lugar, também no chão dos seus ancestrais. GERMANA é uma guerreira que carrega lata d’água na cabeça a vida inteira. É isso que me desperta um sentimento de dor, de solidariedade para com essa minha mana-Germana. Lata d’água na cabeça a vida inteira! A vida inteira!!!

Tantas vezes, quando estou naquele chão, vejo ainda nas manhãs, ainda cedo, mana-Germana, uma afro-descendente em terceira geração, carregando as primeiras latas d’água na cabeça. Segue o dia, segue a semana – sábado, domingo, feriado e lá se vai mana-Germana com sua lata d’água na cabeça. Agora é fim de tarde, prenúncio de noite e lá se vem mana-Germana  com a sua última lata d’água do dia na cabeça – uma rotina que se estende o ano inteiro, com exceção do período invernoso – quando há inverno.

Vendo aquela minha irmã-de-leite nesse trabalho penoso, difícil, a vida inteira – do alto dos seus setenta anos – isso me remete a tantos vieses do seio da “coisa pública” - esta que se tornou uma “casa de mãe-joana”, vil e servil em meio aos que manipulam a cadeira, o erário, o mandato. Sejam os ocupantes de ocasião, sejam os useiros ou vezeiros dessa ocupação.

A isso se chama INJUSTIÇA. Injustiça social. A isso se chama PENÚRIA, abandono, orfandade, desprezo, menosprezo. Abandono e orfandade, desprezo e menosprezo por parte da “coisa pública”. E dói-me ao peito, ver minha mana-GERMNA, 70 anos, sobrevivente de um salário mínimo do Governo (um salário mínimo - ainda bem), e uma rocinha ao sol-a-sol – porque quem é feito em ferro e fogo não se entrega -  carregando lata d’água na cabeça a vida inteira, desde criança (desde criança) até aqui.

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Agora, nestes tempos de caça-ao-voto, entre outras mirabolantes, estou vendo candidatos ao Governo prometendo “água para todos”. E então lembrei-me de mana-GERMANA. Quem sabe será sua “alforria”, não custa sonhar - ela que, escravizada, desde criança até aqui, do alto dos seus setenta anos, carrega lata d’água na cabeça a vida inteira. A vida inteira!