“O QUE A GENTE TEM DE PASSAR...”
Minha mãe, na sua linguagem simplista, mulher que teve a vida marcada pela excruciante luta do sol a sol; que pariu 14 filhos e que teve entraves com o garanhão seu marido e meu pai, costumava dizer por motivos diversos: “o que a gente tem de passar não se bota na porta dos outros”. Eu, menino, ouvia aquilo com atenção e respeito à filosofia de vida da minha mãe, naquele tempo à luz da lamparina e ao chão da capina. Ela que sempre dizia aquilo com base em um fato real.
Dia desses, cheguei ao trabalho por volta de duas da tarde. Ao estacionar, logo pude ver sentada numa sobra de alicerce - numa pequena mureta ali existente - uma mulher de boa idade, dedilhando sofregamente o teclado do seu celular. Estava ela tão envolvida com aquele afazer que era como se não se desse conta do mundo em volta. Notei o gesto e a cena e fui embora.
Algo como vinte e poucos minutos depois, volto ao mesmo lugar. E lá, no mesmo assento, dedilhando o seu celular está aquela dita mulher, que me intercepta: “moço, eu quero falar com você”. “Seja breve, tenho pressa, tenho que entregar uma documentação na justiça”, foi como respondi. E era! Num instante, aquela mulher de voz trêmula, roupa surrada, exasperada, visivelmente perturbada, narrou-me um fato: sua filha de dez anos de idade, por questão de saúde da avó e pelo acompanhamento da mãe (à avó), no hospital distante, foi passar uns dias com o avô e estava sendo abusada pelo tio. Disse que era só “passando a mão”. E a filha, às escondidas e apavorada, pediu-lhe: “mãe, vem me buscar”.
Aquela mãe estava louca, desesperada, sem dinheiro, querendo ir buscar a filha que encontrava-se a centenas de milhas e que para isso só tinha a água do pote. Sugerindo, perguntava-me ela se devia pedir ajuda a uma similar da sua Igreja Evangélica. Disse-lhe que não entendia sobre os critérios de prestação social da Igreja, mas que, ainda assim, ela, sem nada a perder, deveria tentar. Dei-lhe uma cédula e tomei o meu caminho. Antes, porém, quiçá movido pelo sentimento humano, anotei o número do seu celular, pensando num eventual e futuro contato.
À noite, no trânsito, contei o ocorrido para minha mulher. Começava ali a minha aproximação, a minha fisgada, para com o caso daquela mulher. Lembrei-me, então, ali mesmo no trânsito, que tenho uma cliente que presta serviço a uma empresa de ônibus – ainda que essa empresa esteja gravemente na UTI. E qual a sugestão àquela mulher de olho na ajuda da Igreja, me perguntei: “E por que não tentar”?
Ato contínuo, ainda no trânsito, na noite, liguei para a dita mulher que falou comigo com aquela mesma voz trêmula, chorosa, exasperada. E identifiquei-me: eu sou aquele que falou com você hoje à tarde, lembra? E aí, você conseguiu alguma coisa na sua Igreja? Consegui trinta reais, respondeu. Aí o meu coração acelerou e eu falei com a minha consciência: Meu Deus do Céu, trinta reais para quem vai para o meio do mundo buscar uma filha e enfrentar um trauma daquele? Então, prometi que ligaria no dia seguinte. No dia seguinte, cedo da manhã, falei com a senhora da empresa de ônibus e narrei-lhe o drama: tive apoio na hora! Cederia passagem só até dois terços devido ao seu itinerário do percurso em ida e volta, inclusive à filha, na volta. Ótimo! Glória a Deus!
Lembrei-me, então, do ZÉ CARLOS PLÁCIDO, meu amigo de velhos tempos, uma pessoa que cultiva a missão de servir ao social; de ajudar as pessoas; de servir às pessoas. Sucinto, expus-lhe os fatos. Colaboração na hora! Dele e de outros em sua volta. Tomei gosto pela empreitada – a serviço da coleta – e fui misturando os de cá com os de lá. E, então, liguei para aquela mãe e perguntei-lhe: E aí conseguiu o dinheiro da viagem? “Ah meu irmão! Cheguei em casa, não tinha nada. Já gastei 25, inclusive com passagem. Só tenho cinco. Disse com a mesma voz trêmula. Então, pedi-lhe que ao mesmo horário – duas da tarde, estivesse naquele mesmo lugar, à calçada, onde nos encontramos no dia anterior. Ela concordou.
Quando voltamos a nos encontrar, perguntei quando queria viajar, ela respondeu que poderia viajar no dia seguinte. Sem nada lhe dizer quanto às minhas providências, saímos por aí, rumo à empresa de ônibus. No trânsito, porém, imaginei que poderia “atacar” outras pessoas e aumentar as cédulas. Aprendi, então, que o “ataque” há que ser ordenado, programado, para sair o tiro com mais possibilidade de acerto. Naquele momento, então, mais de três da tarde, trânsito intenso, não havia espaço para isso.
E então, com a mulher dentro do carro e ela sem saber nem da rota, nem das minhas atitudes, comecei a “jogar a rede”. Fiz um, dois, três, quatro, cinco lanços. A feira estava garantida! Dirigimo-nos, então, à empresa de ônibus, onde entreguei-lhe o dinheiro arrecadado à presença da pessoa que lhe concedeu as passagens em ida e volta até o ponto possível do itinerário. Viajaria no dia seguinte, oito da manhã. A mulher ajoelhou-se ao chão e, com sua voz trêmula, agradeceu a Deus. Deixei-a na parada de ônibus e cada qual saiu para o seu lado. À noite, voltei a ligar. Tive a impressão de que falava com uma nova mulher: confortada; mais segura, sóbria. Glória a Deus!
No dia seguinte, não consegui ligação. Um dia depois, quando voltei a falar, veio a tragédia: Era tarde! o que antes era só “passar a mão”, agora era ESTUPRO DE VULNERÁVEL, mesmo! Confirmado por exame médico. O seu irmão e tio da criança está preso. Foi como me disse. Pedi-lhe, então, que me trouxesse cópia integral do inquérito. Pretendo continuar na missão. - É como dizia tantas vezes a minha mãe, hoje no Paraíso: “o que a gente tem de passar não se bota na porta dos outros”. E é!
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Dias depois, um novo desfecho: ficou comprovado que tanto os “colaboradores” quanto eu não passamos de uns tolos, nas lábias daquela mulher. E aí, novamente, volta a lição da minha mãe: “o que a gente tem de passar não se bota na porta dos outros”. Com cópia aos partícipes da “prestação social”.
* Viegas questiona o social
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