“... O DIA, A NOITE E O CAMINHO PRA ANDAR”

Eu ainda era um menino, 13, 14 anos de idade, quando certa feita, debaixo do sol, num trabalho de roça, ao lado do meu pai, este me fez uma revelação: “...eu, quando casei com tua mãe, tinha o dia, a noite e o caminho pra andar”. Aquela declaração me deixou em interrogações, numa época em que “criança não podia perguntar”. Em seguida, o meu pai, de livre iniciativa, indica os seus bens: um cavalo de cangalha, um burro de serviço, uma pistola mauser enferrujada da qual não se separava, duas ou três cabeças de gado pé-duro “vigiadas” em campo aberto por terceiros e... uma porção daquelas terras que estariam sendo regularizadas pelo Governo do Estado, a seu pedido. Era o meu pai sentindo-se “melhorado na vida”. A frase ficou eterna na minha cabeça: “quando me casei com tua mãe tinha o dia, a noite e o caminho pra andar”.
O meu pai era um roceiro nato, em tempo integral. Vivia da roça e na roça, mas ainda assim eu tinha “cá comigo”, uma ligeira impressão de que aquele não era lá o ofício espontâneo do meu pai. Ainda criança ele aprendeu a ler “até a cartilha” e a escrever. Fazia cartas; fazia contas, arrancava dente/s,  aplicava injeção, dava conselhos, discutia na sua razão, rezava ladainhas e via-sacra. Foi “redeiro” ambulante sem sair da roça; também foi cazumbá de bumba-boi. Era um advogado nato. Não fumava nem bebia e esbanjava sorriso com o seu dente de ouro. E, no seu conjunto: corpo acima da média, boa-pinta e bom de prosa, era um tremendo garanhão que deixou doze irmãos meus em casa, mais seis no paralelo; mais outros tantos que não vieram.
A certa altura da vida, o meu pai adoeceu e ficou longo tempo ao “fundo da rede”. Sem recursos, a “precisão” rondou ao redor. E quando “levantou” da doença, enfrentou o que imagino hoje fosse uma depressão. Para driblar a depressão, passou do nada a conjecturar versos de cordel. Era o pulsar da veia do poeta, latejando, em busca do que fazer. Àquela época, um fato inédito aconteceu e sacudiu aquele meu  sertão de capoeiras: um homem possuía um jovem cavalo incomum: muito bonito, de boa marcha e valioso. E, como não achava o preço, resolveu pô-lo numa rifa. Aquilo explodiu como uma bomba!
Encrenca, confusão, queixumes, ameaça, egoismo, fuxico, disse-me-disse; incompreensão, insatisfação, ansiedade e tudo o mais girou em torno da rifa de “Pisa Macio”, tal a diversidade de interesses em torno do prêmio único. Uma coisa de louco! Um fato inédito! Um episódio que abalou meio-mundo daquele sertão. Foi aí que o estreante de poeta escreveu A RIFA DO CAVALO ALAZÃO - que na minha isolada opinião, mesmo naquele tempo e ainda que hoje, foi “um sucesso de público e de crítica”. E, por onde que o meu pai ia, onde tivesse duas ou mais pessoas, lá estava ele a recitar as suas trovas, no que ganhava fácil a atenção e as risadas das pessoas. Vi isso tantas vezes. E o poeta sempre com um sorriso proposital e um dente de ouro a reluzir.
E foi nessa loa, nesse jogo de cintura, nesse recital de ocasião que um dia foi bater no balcão de SEU BIBI. Seu Bibi Moniz era o farmacêutico, dono de farmácia e um mais-que-doutor da cidade. Também era chefe-político e... e... amigo e correligionário de Newton Bello, então Governador do Estado (do Maranhão). Newton Belo, filho do lugar dentro em poucos dias viria àquela nossa cidade, imagine: inaugurar um motor de luz elétrica. Nisso, SEU BIBI, na prosa e na trova, deu três ou quatro pontos, ali mesmo sobre o balcão de sua farmácia e sugeriu que o “poeta” escrevesse uns versos “sobre a vida” do  Governador, para serem apresentados no dia da inauguração da usina elétrica.
Ah! Pra quê?! Aquilo foi mais que um desafio aos estertores das veias daquele estreante do cordel. Da vida, quer dizer, da biografia do Governador, mesmo, não tinha quase nada. Mas como do ditério do caboclo daquele meu lugar que “com um pedacinho de peixe seco come uma cuia de farinha” – foi o que o poeta fez. E escreveu um livreto sobre A VIDA DE NEWTON BELLO que o apresentou por inteiro, de viva voz, no dia da inauguração da “usina elétrica”, sob os aplausos de grande multidão. E, de cara, “ficou famoso”.
Àquele tempo, o meu pai com a sua família (mulher e filhos) residia numa encosta de meio-de-mato, sozinho, casa única,  longe de tudo e de todos, numa ponta denominada “CENTRINHO” – um deserto, feito em terras devolutas. E passou a partir daí a enfrentar uma verdadeira maratona em intermináveis e excruciantes viagens com destino à capital e por vezes em contato com o quarto escalão, em busca da legalização daquelas terras – coisa que conseguiu, finalmente, com muito sacrifício, algo como uns quatro anos depois.
Era ali, ainda durante o único e quase interminável processo de legalização daquelas terras de capoeirão e grotas-secas, sofridas pelas derrubadas e queimadas - no eito da roça que o meu pai, já se “achando arremediado” na vida, um dia me disse: “...quando me casei com tua mãe tinha o dia, noite e o caminho pra andar”. E me lembro até hoje, dos lugares, dos detalhes, das veredas, das cacimbas, do plantio, da capina, da colheita, dos meus medos nas veredas solitárias, sombrias e distantes e as muitas roças que o meu pai “botou” e que ajudei a fazê-las, naquele lugar.