A SAGA (E A MÃE) DE CHININICA

"Minha mãe largou do meu pai, ela veio pra São Luís e foi morar na ZONA. Fiquei um tempo comendo na casa da minha tia e depois vim morar com a minha mãe, na ZONA. Não tinha emprego nem escola, comecei a engraxar sapato e, para garantir o dicumê, dava segurança para algumas mulheres da ZONA." Essa foi a declaração - uma espécie de livro aberto - que CHININICA, conterrâneo (da minha cidade), abriu para mim, numa  conversa, quase por acaso.
CHININICA é meu conterrâneo. Conheci-o aos nove anos, na minha cidade natal. Ao que posso lembrar, ele morava ou frequentava a casa de  sua tia, Rita, esposa de Zé-Técnica. E tomava de conta de um pequeno comércio em quase nada, do marido da tia. Depois desapareceu - quer dizer, desaparecemos. Mais tarde, tantas vezes o vi engraxate, na Praça João Lisboa. É toda essa a lembrança que tenho da figura daquele sujeito "brancarano", magricela, narigão, agora careca, envelhecido pelo tempo e pelo sofrimento - o eterno CHININICA.
Recentemente, estive em São Luís, às voltas com um julgamento pelo Tribunal de Justiça, cuja vitória trouxe nas mãos, debaixo do braço! A propósito, passei pela Praça João Lisboa, coração do centro histórico da cidade, para rever um antigo caminho de velhas pegadas que deixei nas diárias em mais de quinze anos - justo ali onde ficou uma fase quase inocente, daquele meu tempo de rapaz.
De repente, olha quem eu vejo à minha frente: CHININICA! Ao lado de  sua mais que sofrida e surrada "cadeira" de engraxate. Tão surrada quanto o seu dono. Aproximei-me.  Queria uma prosa com o cara. Fui pelas beiradas.  Dez reais o preço da graxa, tentei pechinchar. Tá bom, topei a graxa. Aquilo, porém, era só um pretexto. O que eu queria mesmo era uma prosa com aquele sujeito das minhas "antigas conhecenças".
Sentei à cadeira e logo que começou a graxa, comecei o papo: "Acho que tô te conhecendo..., tu não és de São Bento?... e fiz aquele suspense, como se quisesse acrescentar. Ele atalhou: EU SOU O CHININICA. Engatamos na conversa. Nisso, ele resolveu também me identificar. E ele, na mosca, perguntou: Tu és de Belas Águas? Não sei, respondi, enganando. Ele botou a mão na pala (na testa), apurando a visão na minha direção e sapecou: Tu és dos VIEGAS, não é? Pronto, estávamos decifrados e identificados um diante do outro. Aí o que veio de Chininica foi a "leitura" de um fichário, de um documentário de tantos nomes e lembranças da vida no interior. Impressionante!
Então falei: CHININICA, a única lembrança que te tenho é quando você tomava conta de um pequeno comércio do Zé-Técnica, na Rua Grande, foi quando o sujeito, de repente e sem meias palavras abriu o seu próprio livro: "Minha mãe largou do meu pai, ela veio pra São Luís e foi morar na ZONA. Fiquei um tempo comendo na casa da minha tia e depois vim morar com a minha mãe, na ZONA. Comecei a engraxar sapato e, para garantir o dicumê, dava segurança para algumas mulheres da ZONA."
E a escola, lá no interior, como é que foi? Perguntei. "Eu não queria nada-de-nada com a escola; ia para escola era só para brigar. Brigava na ida, brigava na escola, brigava na volta da escola. Vivia suspenso. E como é que aprende?! Perguntou. E a vida na ZONA, como é que foi? "Minha mãe morava na ZONA, então eu ficava por ali, por perto dela. Não tinha emprego nem escola, comecei a engraxar o sapato dos bacanas. Acabei fazendo amizades e conhecendo todo o mundo por ali: os músicos, os garçons os fregueses, as madames, a polícia. A mulherada.
E ganhava dinheiro? Perguntei - Aquilo era só ilusão. Como eu não corria do pau, numa encrenca, comecei a prestar "segurança" para várias mulheres". Segurança, como assim? Perguntei. É que tinha uns caras que transavam, "davam o fechado" e não queriam pagar. Ou então bebiam e saíam de fininho. Era aí que eu entrava em ação. Ou pagava ou então ia parar na polícia. Aí a mulher recebia o dela e eu ganhava o meu. Com a bebida da madame, era do mesmo jeito.
Papo vai, papo vem, me disse que estava naquele ponto, com sua cadeira de engraxate na praça, fazia cinquenta anos. Disse que ali conquistou vários e bons amigos. Um deles foi juiz na sua terra. Doutor J. Era um amigão. Então CHININICA arrumava uma briga, uma encrenca e corria para a casa do doutor, ali perto. Nessa fuga, por vezes almoçava ou jantava. "O doutor era bacana e toda vez que engraxava, eu ganhava por uns dois ou três dias. Fiquei respeitado".
Outra amizade foi com um Coronel. Um dia arrumou uma encrenca e não teve tempo de fuga. "Então falei: avisa para o coronel F T que eu tô aqui". O quê??? O coronel te conhece? - Sim senhor. Tás falando m. pra polícia? Quando cheguei na carceragem, olha quem ta lá? O coronel! Tás fazendo o que aí CHININICA? - Me trouxeram, Coronel. - Tu roubou? Não sinhô. Tu matou? Não Sinhô? Então, vai timbora... Era o Chininica me contando as vantagens da vida na sua combalida cadeira de engraxate.
E sai dali, dizendo para mim mesmo que não me lembrava nem da mãe de CHININICA nem da vida daquela "mulher da vida", mulher da zona. E fiquei martelando o juízo,  até que... (até que)... reconstruindo no tempo,  os neurônios se recompuseram. "Escritinha" a Rita, sua imã, mulher de Zé-Técnica, tantas vezes vi aquela senhora de boa idade, madurona, surradona, cansada da guerra. Mulher da ZONA que àquele tempo eu já identificava na conterraneidade com a qual nunca tive qualquer aproximação. E só agora (só agora), reconstituindo no tempo, a lembrança daquele semblante, posso ver com absoluta certeza que aquela mulher cansada da guerra que acabou os seus dias na ZONA... era a mãe de CHININICA.

* Viegas  questiona o social.