A "CARTA"

Na semana passada, quando aqui abordei sobre O CHEQUE, era da minha intenção relacioná-lo à CARTA - ambos que tiveram ascensão, apogeu e queda. Ambos, agora, relegados à indigência, ao ostracismo. Os enlevos e relevos sobre O CHEQUE, na minha escrita, acabaram por tomar o rumo do inesperado; seguiu-se pela nota promissória e foi arrematar-se na seara do Cartão de Crédito. De sorte assim que A CARTA "sobrou" naquele tema, daí porque venho agora.
Qual o CHEQUE ao seu tempo, a carta também ditou e reinou. E foi um expoente vetor da comunicação interpessoal à distância. Era o elo que fazia a ligação, a comunicação  entre os cristãos, estivessem onde estivessem; falassem o idioma que falassem. Negros, brancos, católicos, protestantes, ricos e pobres; doutores e analfabetos comunicavam-se através da CARTA, que também era conhecida como "missiva".
Não é meu desejo, no entanto, rodar o mundo com a carta ou dela fazer um cavalo-de-batalha; muito menos fazer dela um leva e traz em meio aos sangue azuis desses que vivem nos ares, olhando a vida de cima para baixo e rasgando dinheiro. Quero ficar aqui mesmo, quase à beira de casa e um pouquinho mais adiante para reconstruir e lembrar uma passagem de glória; de alegrias;  de contentamento; de "notícia"; de relacionamento/s que foi a carta.
Velhos tempos, belos dias - aqueles da carta. A correspondência exercia um tom carismático e envolvente entre os figurantes do expediente - fosse remetente, fosse destinatário, sobrando também para a família em volta: menção, recados, lembranças. Ali, no seu conteúdo, costumavam estar a  notícia, a informação, a declaração, o queixume, as lamúrias, as vitórias, as confissões e boa parte da planície de uma vida, em cuja resposta, como de praxe também entremeada por tantas outras declarações informações e confissões. Era assim, o interminável vai-e-vem ao terreno das cartas.
Para o ir e vir garantido das cartas - claro - usavam-se OS CORREIOS, num tempo em que a estatal não passava mais do que três ou quatro dias para a entrega de uma correspondência no Estado. Parece até que os Correios, naquele tempo, não tinham outra coisa para fazer senão a condução e entrega de cartas e pequenas e poucas encomendas, muitas que eram conduzidas pelo "estafeta" - na cabeça, no suor. As cartas via/correios, exerciam uma aura de coisa bacana, saudável, gostosa, princialmente se os envelopes, que na sua grande-maioria eram emoldurados em verde-amarelo. "Via aérea par avion".
Outro detalhe que fazia da carta uma criação de encher os olhos e agradar os corações, eram aqueles selos - por vezes uma quantidade de selos - e aqueles carimbos, ainda que surrados ou borrados que se sobrepunham aos selos e tudo fazendo um conjunto de esperanças, alegrias e rejuvenescimento das relações interpessoais - que eram as cartas. E as cartas feitas à máquina-de-escrever? Ou ainda que manuscritas? De tão longas dizia-se que era "um jornal".
É certo  ainda que àquele tempo também circulavam cartas extra-correios que eram  conduzidas e entregues de favor, através de amigos, conhecidos, ou pela oportunidade do portador. Nelas costumava-se escrever em letras maiúsculas: "POR MÃO PRÓPRIA" ou por vezes, traduzindo o mesmo significado: "P.M.P". As cartas por mão própria  - de remessa particular - não exerciam a mesma aura nem o mesmo carisma, nem o mesmo impacto das correspondências via Correios, com envelopes de bordas verde-amarelo e sapecados de selos e carimbos que faziam a graça e a alegria que era a carta.
Também viveu em parte do tempo missivista, o tinteiro e a caneta-tinteiro. Todo o cuidado era pouco com o tinteiro. Aquilo poderia derramar, resultar num incidente e o estrago estava feito. A caneta-tinteiro suportava tinta através de uma "bomba", um recipiente emborrachado. Cheia a bomba, o titular tinha caneta para mais uns dois ou três dias, quando então voltava a carregá-la novamente. Cruel mesmo era o tempo da "pena", em recursos primários. Enfiava-se a "pena" ao tinteiro, escrevia-se algo como uma linha. E assim multiplicavam-se as linhas e faziam-se as cartas.
Muita gente que mandava uma carta não sabia escrever. Do Nordeste pra São Paulo; de São Paulo para o meio do mundo, muitas cartas eram feitas a pedido, de favor, por terceiros. O interessado fazia o "ditado"; o "escrevinhador" fazia o texto. Depois lia e a carta estava confirmada. Também a esse tempo sobreviveu o "bloco" de cartas, destinado exclusivamente às correspondências. Comprava-se nas livrarias. Que bonitinho! E, juntamente com envelope, caneta-tinteiro, lápis, borracha, aquele "kit" ficava guardadinho num lugar exclusivo da casa. Assim era o tempo da carta.
Primo pobre da carta era O BILHETE. Esse, coitado, não tinha lá muito valor, nem prestígio mas... ainda assim "dava suas cacetadas". Era o "quebra-galho" da situação.  Geralmente era coisa de beira de casa, não ia muito longe e os filhos ou moleques conhecidos costumavam fazer a condução e as entregas. De tão relaxado que era o bilhete, muitos  faziam-nos em pedaços de folha de caderno ou a lápis, simplesmente dobrados - expostos e sem direito a envelope. Terreno em que os bilhetes se multiplicavam era em meio aos namorados, candidatos ao namoro e em meio a raparigas.  O molecote da entrega aproveitava e... ganhava o trocado do picolé.
A esse tempo e, consoante a interlocução, pulularam os RECADOS. Aí veio o telefone; depois veio o celular e outras opções da modernidade. E aí... as cartas... e os bilhetes e os recados sumiram. Eu, porém, de minha parte, vivo de cartas. Sim porque uma petição é uma carta; um recurso é uma carta. Razões, apelação, defesa, agravo, ação judicial - são tudo, uma carta!!!

            * Viegas é advogado e questiona o social.